quinta-feira, fevereiro 22, 2007

Histórias, Choros e Esperanças

Fotografia de Crianças do Haiti

No meu Muro das Lamentações
me encontro,
choro pela barbárie cometida,
entre irmãos e irmãos.

Luanda-Mãe, vejo de perto e longe
a tua imparável decadência:
"catorzinhas" de Roque de Santeiro,
meninas-mulheres subjugadas
à industria do sexo.
Ndengues(1) na rua que não é rua
delicia-se ávidos de comida
nas "panelas de 4 rodas".

Na Angola descrente e desacreditada,
“meninos de esgoto” sobrevivem
num mundo subterrâneo,
onde vivem para não lembrar,
permanecem estáticos pensando
que o mundo urbano é o perigo fatal,
a imaginação cavalga enquanto a realidade
lhes nega a panaceia sonhada.

E nossas mães Mãe...
morrem como animais
diante de nossos olhos
pelos "soldados perfeitos".
E nós Mãe, ao entardecer
refugiamo-nos em kubicos(2)
onde não dormimos, porque os
pesadelos de guerra reais
assombram-nos repetidamente.

A fome indelével
arrasta-nos para a morte inevitável,
as raízes de banana findaram,
então virámo-nos para os cães
e quando estes não mais encontramos,
os gatos seguiram-lhes.
E o inverso igualmente sucedeu.

Crianças pequenas reproduzem a guerra,
canas de milho transformam-se
repentinamente em armas de combate,
Fazendo-nos reviver o pesadelo da guerra.

Para aonde nos levam Mãe?
Seguimos em carrinhas,
levados por não sei quem,
para não sei onde.
Somos animais de troca,
a escravidão retornou.

Aqui no nosso país a ditadura
faz-se passar por democracia,
mas esta fazemos nós.
Sobrevivemos nos prédios
destruídos pelos confrontos,
subsistimos como os nossos
honrados avós,
no tempo em que as grilhetas
aprisionavam seus corpos.

De ti me arrancaram,
mesmo antes de nascer.
Reafricanizo-me tentando honrar-te,
luto por ti e pelos meus irmãos
procurando a África emancipada
livre da prisão da mente.
Redobro minhas forças
dignificando-te e elevando-te,
esperando um dia, o novo sol!


(1) Miúdos, crianças. (trem. kimbundo)
(2) Casas. (derivado do kimbundo)



Nelson Ngungu Rossano - poeta neo-afro-lusomestiço

17 comentários:

Nelson Ngungu Rossano disse...

Este poema postei-o agora, pois a amiga Juliana queria ver algo de minha autoria - então aqui vai...

É um poema sofredor que visa passar para o mundo situações indescritiveis pelas quais inúmeras crinças passaram e ainda passam.


Abraço e beijo para todos.

Klatuu o embuçado disse...

E ainda bem que queria, porque eu também! ;)

Agora não estou com o tempo necessário, mas gostei... deu para perceber em que escola poética se inscrevem os teus versos...

Voltarei para dizer mais umas coisas.
Abraço!

Juliana Marchioretto disse...

Bem forte esse texto. Muito mesmo.
Mas consegui ver uma verdade que dificilmente vemos nos filmes e cenas de fome e miséria...

mto bom mesmo!

beijo

Fran Rebelatto disse...

Nossa, e onde estavas escondido...Gostei muuito daqui, confesso que é uma breve passada, mas o suficiente para vber de ti muita sensibilidade, muita percepção do mundo a sua volta...
E cadê nossas mães, cadê a justiça, cadê tanta coisa, nós ao menos poetas, tentamos responder a tudo isso com um brilho no olhar e muita verdade na poesia e creio que isso já é bastante coisa...

Volto, certamente, emocionada vou nesse momento...Beijos e te cuida

Lord of Erewhon disse...

Lê isto, amigo: http://gothland666.blogspot.com/2006/09/aquele-que-vai-morrer.html
... e depois visita os três links abaixo do post... Ficarás a conhecer o meu conceito ideal de Pátria Portuguesa.

P. S. Sou também «KLATUU o embuçado»; tenho dois blogs.

Abraço.

Lord of Erewhon disse...

E lê também este: http://gothland666.blogspot.com/2006/05/o-heri.html

Lord of Erewhon disse...

P. S. Ah, e se estiveres com tempo entretem-te a ler os comentários aos posts... são esclarecedores de muito que se anda a passar neste País... que foi, é e há-de continuar a ser uma Pátria de Pátrias, generosa e alta.

Chellot disse...

Nelson eis uma triste realidade. O mundo investindo em tecnologias absurdas e pessoas vivendo miseravelmente desnutridas de alimentos, de carinho, de respeito e de dignidade. A escravidão retorna, no entanto torna-se mais cruel, subhumana e destruidora. Direitos humanos para quem? Só para quem paga impostos, para quem se mata de trabalhar, para quem contribui com a renda do país? E aqueles que foram abandonados pela sociedade de seu próprio país, não merecem direitos?
O homem é imperfeito e em sua imperfeição comete atrocidades contra ele mesmo.

Beijos de liberdade.

Lord of Erewhon disse...

Ainda bem que gostaste e percebeste o texto! ;)
Houve quem não percebesse de imediato, como podes ver nos comentários.

Abraço.

Ana Luar disse...

A força do que li... faz-me querer voltar a ler-te.

Adorei estar aqui!

Anónimo disse...

Uau! Genial, fiquei sem fôlego!
Você tem algum livro editado?
Sabe que estou pensando em fazer a minha tese de mestrado sobre escritores de origem africana, pensei em Angola e Brasil.
Quais são os melhores prosistas angolanos na sua opiniao?

Um beijo, parabéns!

Muadiê Maria disse...

Nelson,
muito forte e comovente seu texto. Também choro, por Angola e pelo Brasil, pois como já disse Caetano "o Haiti é aqui."
Kandandu,
Martha

Anónimo disse...

Hola Nelson
mira estos semanas mi corazon esta con agujeros por la situacion de mi pais Bolivia, en los noticias solo veo la gente que perdio todo por las lluvias y muerte de muchos ganado, caballos, chanchos y gallinas, me siento tan impotente que lloro de tristeza y este tu poema me llego al alma porque hay tantos lugares que necesitan ayudan... gracias por hacerme reflexionar

O Sibarita disse...

Olá Nelson! E o mundo gira assim por entre os dedos dos poderosos de plantão... Para a fome e a miséria eles não estão nem aí!

Parabéns pela sua poesia!

Aqui em Salvador capital da Bahia berço do Brasil não é muito diferente, infelizmente é isso... Permita-me deixar uma poesia que falo exatamente disso ja que nasci e me criei na maré (palafitas), onde, a fome e a miséria andam de mãos dadas e dona morte requebra sob peles de barrigas famintas.

ALAGADOS

Estes versos
são memórias e sonhos
da maré como lembrança
nos desejos da infância
vivida nas palafitas...

De pés descalços
correndo pelas pontes,
catando raios de sol
nas asas de um beija-flor!
Meu coração tinha enredos:
melancolia e fantasias
palpitavam como folias
e desfilavam sem alegorias...

À noite,
os momentos eram
infinitos, um fifo aceso,
espantando a escuridão,
gatos lânguidos esfomeados,
ratos correndo dos algozes
e tamancos rachados
fugindo da leptospirose...

O tempo à noite
sempre se estendia.
Eu tentava empurrá-lo
com as mãos, pura agonia!
Ele teimava em desfilar
entre os dedos, lentamente...
Segundos, minutos, horas e dias,
parava o tempo!

Uma Ave Maria e um Pai Nosso
para amenizar o sofrimento!

Pelas frestas,
viam-se as últimas gotas
de estrelas trêmulas circulando
sobre tábuas podres sobrepostas
e esqueletos de caibros sob a lua
que ludibriava os telhados...

O dia florescia na enchente,
atiçada pela maré de março.
Em cada barraco, olhos velados
retiravam o que tinham
e o que não tinham, sufoco!
O povo dos alagados
recorria a todos os santos
sob a luz de um sol minguado...

Correi, marezeiros!
Há nas pontes,
dependurados e sombreados,
desejos da vida, sangue em lágrimas,
trapos velhos e pinicos furados
rasgando o ventre dos sonhos
sempre macerados!

Bocas de caranguejos,
mosquitos circulando
e asas de morcegos.
Nenhuma flor como desejo...

A maré cheia
nos convidava ao mergulho.
Crianças davam caídas,
era o prazer do corpo na água,
o debater de braços e pernas,
nadar! Ingenuidade da flor idade...
Na borda do prazer,
a cilada montava o cenário,
entre estacas, lixos e galhos.
O perigo era fatal... Tarde demais!
No azul, um sol de tempestades.
A morte é crua, a felicidade é fugaz,
na adversidade mais um que se vai!

Erguia-se um silêncio!
Havia uma alma desesperada,
em fuga, pedia a extrema-unção.
A tarde uivava, a dor se curvava
e nenhum padre, nenhuma benção,
mas a noite te virá em orações!
Naqueles momentos,
a maré cumpria a sua sina,
vestia-se de cinza
e nos desespero das lágrimas
uma garoa fina!

Mas, não sei, era paradoxal!
Pratos vazios, tripas em revoluções,
urubus, cachorros, baratas e ratos
lutavam por comidas no beira mangue.
Siris magros e mariscos aferventados,
crianças amareladas exangues.
O prato se repartia: mercúrios disputados,
enquanto lombrigas faziam greve de fome!

Sob um céu de jade natal chegava,
como luas estreladas!
Nos olhares, quanta alegria,
escondendo a dor, a melancolia...
Os barracos eram enfeitados,
nos pisos de tábuas carcomidas
a areia branca dava o toque mágico,
nos alagados, enfim, tinha vida!

Nos jarros de barro,
galhos de pitanga e espadas de Ogum,
folhas de arruda presas nas portas,
sal grosso nos telhados e alfazema
para espantar os maus-olhados,
gatos pretos ludibriados...

A noite era o olhar e viria em clarões!
Nas portas, nenhum tamanco, nenhum chinelo.
Pela manhã, nenhuma bola, nenhuma boneca!
Papai Noel nunca vinha, disfarçava, enganava...

No fundo de nós,
uns olhos de tormentos
torturados por natais iguais,
à procura de manhãs desiguais!

Valei-nos Jesus menino!
Lembrai dos seus pequeninos,
em suas mãos os nossos destinos!

O Sibarita

abraços,
O Sibarita

Klatuu o embuçado disse...

Este é um bom poema.
Tendo em consideração o presente da civilização africana... suponho que a «poesia de intervenção e denúncia» se torna natural; uma qualquer forma de neo-realismo... Mas não esqueças as paisagens inauditas, os animais belos e livres, os poentes e os nascentes, a beleza da mulher africana, generosa e altiva, e o cheiro da terra, da chuva e do ar... Há todo um reino de preciosos lugares da alma e do coração à espera de ganharem forma poética!

Abraço!

brilho da lua disse...

feliz desejo o da Juliana,
senão não poderíamos desfrutar desta bela e intensa poesia...
fico a aguardar pelos tais "lugares da alma e do coração à espera de ganharem forma poética!" :O)

Madeira Inside disse...

Olá!!!!!!
:))))))
Boa! Gostei muito de te ler!
Líndo poema!
São histórias, choros e espernaças de todos os dias!

Um beijinho:))