sexta-feira, dezembro 15, 2006

Perfumes

Sul-Africana



1

cheiros cheios
de desejo
perfuram
veios


2
contra olfatos
não há argumentos



Frederico Barbosa - poeta Brasileiro

quinta-feira, dezembro 14, 2006

Um Dia




Um dia, gastos, voltaremos
A viver livres como os animais
E mesmo tão cansados floriremos
Irmãos vivos do mar e dos pinhais.

O vento levará os mil cansaços
Dos gestos agitados irreais
E há-de voltar aos nosso membros lassos
A leve rapidez dos animais.

Só então poderemos caminhar
Através do mistério que se embala
No verde dos pinhais na voz do mar
E em nós germinará a sua fala.


Sophia de Mello Breyner – poetisa portuguesa

quarta-feira, dezembro 13, 2006

Revelação

Lúcifer



Valete

Esta é a palavra dos teus filhos que tu nunca amparaste
aqueles que te amaram e tu abandonaste
aqueles que te chamaram e que tu desprezaste
aqueles que guerrearam quando tu recuaste
aqueles que acreditaram sem que tu te revelasses
aqueles que mendigaram e tu não alimentaste
aqueles que se esgotaram, tombaram, arrastaram-se
definharam, imploraram-te e tu não levantaste
que Mundo é esse que se alimenta da nossa amargura
e que se sustenta o seu progresso com a nossa penúria
será que não ouves as lágrimas afilhadas da sorte,
e os corações que batem resignados à espera da morte?

Deus

Eu sou o vosso Deus, sou o vosso criador
eu sou a vossa luz, pai , juiz , protector
eu nunca vos abandono eu estou sempre por perto
e através da fé , sentirão meu afecto
basta acreditar em mim e seguir os meus ensinamentos
que terão a salvação e acabará o tormento
fraquejarás se duvidares da minha existência
porque a chave da libertação reside na crença

Valete refrão

Mas onde é que estás
quando o sofrimento nos aprisiona
quando até a Esperança diz que já não vale a pena
quando todo esse Mal se apodera dos homens alastra-se e elimina
todo o Bem que nos abrigou

Onde é que tu estás
quando a fome abate mais um crente
quando a felicidade passa a utopia dos dementes
quando a escuridão invade o nosso espaço assume-se
soberana sobre o Sol que nos criou


Valete

Eu vi-te nos versos que a beleza tornou poesia
na esperança que o sol trazia em cada novo dia
no cravo vermelho que resistia nas noites sombrias
no amor destes homens de bolsos e mãos vazias
eu vi-te na espada que ensanguentou Lúcifer
no futuro que florescia no ventre duma mulher
na causa dos justos que a ambição não destruiu
e no sorriso das crianças que a inocência pariu
mas perdi-te intensidade desta dor permanente
no estrondo das balas que levaram gente inocente
na frieza dos tiranos que a Democracia formou
na exploração dos fracos o Mundo legitimou

Deus

eu não sou a única força transcendente deste Universo
o Diabo também existe, é o Senhor do Mundo Perverso
é ele que divide e atrai os homens ao pecado
tu tens que resistir o Diabo é obstinado
eu dei-vos livre arbítrio, liberdade total
cabe a cada um de vós decidir entre o Bem o Mal
é a falta de Moral que traz desordem e desgraça
se viverem por mim o Mal deixará de ser ameaça


Valete refrão


Valete

Eu não percebo a tua existência e o teu poder transcendente
do que vale saberes tudo se continuamos inconscientes
do que vale poderes tudo se nós vemos sofrimento
do que vale veres tudo se nunca te fazes presente
quando parece que te manifestas, escondes-te num ápice
como te escondeste naquele nevoeiro que encobriu Auschwitz
naus partiram com escravos e tu ficaste à varanda
camuflaste a mancha de sangue que inundou o Ruanda

Deus

Seria tudo assim bem fácil a culpares-me de tudo
mas são os homens a causa do descalabro do mundo
eu não posso interferir, apenas assisto e analiso
só no julgamento final é que eu corrijo e decido
lembra-te que a vida terrena é só uma passagem
e depois da morte ainda terás uma portagem
os pecadores serão punidos e arderão no Inferno
os bons serão felizes no Paraíso eterno

Valete

Não tem sentido
Então porque é que não nascemos logo no Paraíso?

Deus revelando-se

Tu fazes muitas críticas, acusações e perguntas
agora vou abrir o jogo, só para ver se tu aguentas
Deus só existe fantasiado na vossa mente
eu sou Diabo, o único ser superior existente
vocês são minha criação, feitos à minha semelhança
por isso é que o mundo é um palco de Malevolência
quando praticam o Bem é só um acto de desobediência
vossos instintos naturais são o ódio e a ganância
terão sempre a ditadura, a escravatura, a opressão
descriminação, censura, repressão
minha função foi criar-vos para autodestruírem-se
para fustigarem-se, invejarem-se, consumirem-se
para mergulharem na imperfeição, erro e pecado
enlamaçarem-se no Mal que eu tenho libertado
vou assistir, disperto e alegre ao vosso caos inquieto
até este planeta se tornar na Terra-Mãe do inferno

Deus só existe fantasiado na vossa mente


Anjo Negro

Será em vão rezares por um sonho que não verás
e ambicionares por um Mundo que não terás
não esperes Justiça onde nunca houve Paz
não há salvação nas terras de Satanás


Valete – Rapper e poeta luso-santomense

segunda-feira, dezembro 11, 2006

Nhã Codê

Negro Amotinado


Tiraram o lume dos teus olhos
e fizeram braseiro
para aquecer a noite fria;
noite de qualquer dia.
Roubaram o teu riso
e encheram de gargalhadas
de luz e de música
as suas reuniões frustradas.
Da tua pele fizeram tambor
para nos ajuntar no terreiro!
Dondê nha Codê?
Não
não mataram o meu filho
que eu sei que o meu filho não morre.

(Se choro
são saudades de nha Codê...)
Nha Codê vive
na evocção de um mundo distante
no riso e no choro das ervas rasteiras
na solidão dos campos
nas pândegas de marinheiros
na vida que nasce e morre
em cada dia que passa!
... E em mim
essa saudade de nha Codê!


TERÊNCIO ANAHORY – poeta cabo-verdiano
(Em "Caminho longe", 1962)

domingo, dezembro 10, 2006

Vozes D'África

Busca de Suzart


DEUS! Ó Deus! Onde estás que não respondes?
Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes
Embuçado nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito,
Que embalde desde então corre o infinito...
Onde estás, Senhor Deus?...

Qual Prometeu tu me amarraste um dia
Do deserto na rubra penedia
— Infinito: galé!...
Por abutre — me deste o sol candente,
E a terra de Suez — foi a corrente
Que me ligaste ao pé...

O cavalo estafado do Beduíno
Sob a vergasta toma ressupino
E morre no areal.
Minha garupa sangra, a dor poreja,
Quando o chicote do simoun dardeja
O teu braço eternal.

Minhas irmãs são belas, são ditosas...
Dorme a Ásia nas sombras voluptuosas
Dos haréns do Sultão.
Ou no dorso dos brancos elefantes
Embala-se coberta de brilhantes
Nas plagas do Hindustão.

Por tenda tem os cimos do Himalaia...
O Ganges amoroso beija a praia
Coberta de corais...
A brisa de Misora o céu inflama:
E ela dorme nos templos do Deus Brama,
— Pagodes colossais...

A Europa é sempre Europa, a gloriosa!...
A mulher deslumbrante e caprichosa,
Rainha e cortesã.
Artista — corta o mármore de Carrara;
Poetisa — tange os hinos de Ferrara,
No glorioso afã!...

Sempre a láurea lhe cabe no litígio...
Ora uma c'roa, ora o barrete frígio
Enflora-lhe a cerviz.
O Universo após ela — doudo amante —
Segue cativo o passo delirante
Da grande meretriz.

Mas eu, Senhor!... Eu triste abandonada
Em meio das areias esgarrada,
Perdida marcho em vão!
Se choro... bebe o pranto a areia ardente;
Talvez... p'ra que meu pranto, ó Deus clemente!
Não descubras no chão...

E nem tenho uma sombra de floresta...
Para cobrir-me nem um templo resta
No solo abrasador...
Quando subo às Pirâmides do Egito
Embalde aos quatro céus chorando grito:
"Abriga-me, Senhor!..."

Como o profeta em cinza a fronte envolve,
Velo a cabeça no areal que volve
O siroco feroz...
Quando eu passo no Saara amortalhada...
Ai! Dizem: "Lá vai África embuçada
No seu branco albornoz..."

Nem vêem que o deserto é meu sudário,
Que o silêncio campeia solitário
Por sobre o peito meu.
Lá no solo onde o cardo apenas medra
Boceja a Esfinge colossal de pedra
Fitando o morno céu.

De Tebas nas colunas derrocadas
As cegonhas espiam debruçadas
O horizonte sem fim...
Onde branqueja a caravana errante,
E o camelo monótono, arquejante
Que desce de Efraim...

Não basta inda de dor, ó Deus terrível?!
É, pois, teu peito eterno, inexaurível
De vingança e rancor?...
E que é que fiz, Senhor? Que torvo crime
Eu cometi jamais que assim me oprime
Teu gládio vingador?!...

Foi depois do dilúvio... Um viandante,
Negro, sombrio, pálido, arquejante,
Descia do Arará...
E eu disse ao peregrino fulminado:
"Cão!... Serás meu esposo bem-amado...
— Serei tua Eloá..."

Desde este dia o vento da desgraça
Por meus cabelos ululando passa
O anátema cruel.
As tribos erram do areal nas vagas,
E o Nômada faminto corta as plagas
No rápido corcel.

Vi a ciência desertar do Egito...
Vi meu povo seguir — Judeu maldito —
Trilho de perdição.
Depois vi minha prole desgraçada
Pelas garras d'Europa — arrebatada —
Amestrado falcão!...

Cristo! embalde morreste sobre um monte...
Teu sangue não lavou de minha fronte
A mancha original.
Ainda hoje são, por fado adverso,
Meus filhos — alimária do universo,
Eu — pasto universal...

Hoje em meu sangue a América se nutre
— Condor que transformara-se em abutre,
Ave da escravidão,
Ela juntou-se às mais... irmã traidora
Qual de José os vis irmãos outrora
Venderam seu irmão.

Basta, Senhor! De teu potente braço
Role através dos astros e do espaço
Perdão p'ra os crimes meus! ...
Há dois mil anos... eu soluço um grito...
Escuta o brado meu lá no infinito,
Meu Deus! Senhor, meu Deus!! ...

Antônio de Castro Alves – poeta afro-mameluco-brasileiro
São Paulo, 11 de Junho de 1868

sexta-feira, dezembro 08, 2006

Costra o Vento e as Marés

Ernesto Che Guevara


Este poema (contra o vento e as marés) levará minha assinatura.
Deixo-lhes seis sílabas sonoras,
um olhar que sempre traz (como um passarinho ferido) ternura,
Um anseio de profundas águas mornas,
Um gabinete escuro em que a única luz são esses versos meus,
um dedal muito usado para suas noites de enfado,
um retrato de nossos filhos.
A mais linda bala desta pistola que sempre me acompanha,
a memória indelével (sempre latente e profunda) das crianças
que, um dia, você e eu concebemos,
e o pedaço de vida que resta em mim.
Isso eu dou (convicto e feliz) à revolução.
Nada que nos pode unir terá força maior.


Ernesto Che Guevara – revolucionário e poeta Argentino-Cubano

quinta-feira, dezembro 07, 2006

Declaração

Luto!


Eu, abaixo assinado, embalsamador de profissão,
declaro por minha honra
que deste corpo extraí o que pulsava
e fazia cumprir suas funções
quando funcionava.
Mais declaro que nele não encontrei
outro elemento além dos ditos e descritos
nos comuns manuais de anatomia.
Ausentes dele qualquer abstracção,
sintomas de tristeza, desagrado,
sinais de medo ou discordância
em relação à hora da paragem.
Por minha fé ainda certifico
a apropriada condição estéril
do que remanesceu e expeço via aérea
com garantia firme
de ser reconhecido por quem o conheceu
quando o corpo era inteiro e se reconhecia.

Leite de Vasconcelos – poeta luso-moçambicano

Do livro “Irmão do Universo”, edição da
AEMO/93, página 101.

quarta-feira, novembro 29, 2006

Aconteceu-me

Capuchinho Vermelho


Eu vinha de comprar fósforos
e uns olhos de mulher feita
olhos de menos idade que a sua
não deixavam acender-me o cigarro.
Eu era eureka para aqueles olhos.
Entre mim e ela passava gente como se não passasse
e ela não podia ficar parada
nem eu vê-la sumir-se.
Retive a sua silhueta
para não perder-me daqueles olhos que me levavam espetado
E eu tenho visto olhos !
Mas nenhuns que me vissem
nenhuns para quem eu fosse um achado existir
para quem eu lhes acertasse lá na sua ideia
olhos como agulhas de despertar
como íman de atrair-me vivo
olhos para mim!
Quando havia mais luz
a luz tornava-me quase real o seu corpo
e apagavam-se-me os seus olhos
o mistério suspenso por um cabelo
pelo hábito deste real injusto
tinha de pôr mais distância entre ela e mim
para acender outra vez aqueles olhos
que talvez não fossem como eu os vi
e ainda que o não fossem, que importa?
Vi o mistério!
Obrigado a ti mulher que não conheço.


Almada Negreiros - poeta luso-são-tomense

quinta-feira, novembro 23, 2006

Makèzú*

Pintura de Malangatana



– "Kuakié(1)!!!... Makèzú, Makèzú..."
...................................................

O pregão da avó Ximinha
É mesmo como os seus panos,
Já não tem a cor berrante
Que tinha nos outros anos.

Avó Xima está velhinha,
Mas de manhã, manhãzinha,
Pede licença ao reumâtico
E num passo nada prático
Rasga estradinhas na areia...

Lá vai para um cajueiro
Que se levanta altaneiro
No cruzeiro dos caminhos
Das gentes que vão pr'a Baixa.

Nem criados, nem pedreiros
Nem alegres lavadeiras
Dessa nova geração
Das "venidas de alcatrão"
Ouvem o fraco pregão
Da velhinha quitandeira.

– "Kuakiè... Makèzú... Makèzú..."
– "Antão, véia, hoje nada?"
– "Nada, mano Filisberto...
Hoje os tempo tá mudado..."

– "Mas tá passá gente perto...
Como é aqui tás fazendo isso?"

– "Não sabe?! Todo esse povo
Pegó um costume novo
Qui diz qué civrização:
Come só pão com chouriço
Ou toma café com pão...

E diz ainda pru cima
(Hum... mbundo kène muxima(2)...)
Qui o nosso bom makèzú
É pra veios como tu".

– "Eles não sabe o que diz...
Pru qué qui vivi filiz
E tem cem ano eu e tu?"

– "É pruquê nossas raiz
Tem força do makèzú!..."


*Makezu – nozes de cola (sing. dikezu)
(1)Kuakié! – amanheceu!
(2)Mbundu kene muxima - negro não tem coração
(Palavras da Língua Kimbundu)


Viriato da Cruz – poeta luso-angolano
(poema de 1961)

segunda-feira, novembro 20, 2006

Exactidão

Firmino_Pascoal - Sob o Olhar Negro da Lua



Em cada poema
escorrem muitas verdades
algumas mais virtuais
que outras
outras mais reais
que algumas
e nessa ponte
versificada
vai-se denunciando
muita porcaria,
os lacaios
ratos
ratazanas
e tantas outras asneiras
que não cabem
nas letras


Domi Chirongo – poeta moçambicano

domingo, novembro 19, 2006

Mesquita Grande

Mesquita


Neste raso Olimpo argamassado em febre
e coral, o Deus maior sou eu. Por mais
que as pedras, os muros e as palavras afirmem
outra coisa, por mais que me abram o corpo
em forma de cruz e me submetam a árida

voz às doces inflexões do cantochão latino,
por mais que a vontade de pequenos deuses
pálidos e fulvos talhe em profusas lápides
o contrário e a sua persistência os tenha
por Senhores, o sangue que impele estas veias

é o meu. Pórticos, frontarias, o metal
das armas e o Poder exibem na tua sigla
a arrogância do conquistador. Porém o mel
da tâmaras que modula o gesto destas gentes,
o cinzel que lhes aguça a madeira dos perfis,

a lenta chama que lhes devora os magros rostos,
meus são. Dolorido e exangue o próprio
Cristo é mouro da Cabaceira e tem a esgalgada

magreza de um velho cojá asceta.
Raça de escribas, mandai, julgai, prendei:
Só Alah é grande e Maomé o seu profeta.


Rui Knopfli – poeta luso-moçambicano

sexta-feira, novembro 17, 2006

Soneto do Velho Escandaloso

Velho


Tu, oh demente velho descarado,
Escândalo do sexo masculino,
Que por alta justiça do Destino
Tens o impotente membro decepado:

Tu, que, em torpe furor incendiado
Sofres d'ímpia paixão ardor maligno,
E a consorte gentil, de que és indigno,
Entregas a infrutífero castrado:

Tu, que tendo bebido o méstruo imundo,
Esse amor indiscreto te não gasta
D'ímpia mulher o orgulho furibundo;

Em castigo do vício, que te arrasta,
Saiba a ínclita Lísia, e todo o mundo
Que és vil por gênio, que és cabrão, e basta.


Nas "Poesias satíricas inéditas de M. M. B. du Bocage, coligidas
pelo professor A. M. do Couto" (Lisboa 1840), vem este soneto à página
28, e tem aí o seguinte título: -- "A um músico velho chamado L. F." --
Não alcançamos alguma outra indicação, nem mesmo vimos outras cópias
deste soneto, com as quais pudéssemos conferi-lo. [nota da fonte]


Manuel Maria Barbosa du Bocage – poeta português

quarta-feira, novembro 15, 2006

Sonho de Mãe Negra

Mãe Negra e Seu Filho na Somália


Mãe negra
Embala o seu filho
E na sua cabeça negra
Coberta de cabelos negros
Ela guarda sonhos maravilhosos

Mãe negra
Embala o seu filho
E esquece
Que o milho já a terra secou
Que o amendoim ontem acabou

Ela sonha mundos maravilhosos
Onde o seu filho iria á escola
Á escola onde estudam os homens

Mãe negra
Embala o seu filho
E esquece
Os seus irmãos construindo vilas e cidades
Cimentando-as com o seu sangue

Ela sonha mundos maravilhosos
Onde o seu filho correria na estrada
Na estrada onde passam os homens

Mãe negra
Embala o seu filho
E escutando
A voz que vem de longe
Trazida pelos ventos
Ela sonha mundos maravilhosos
Mundos maravilhosos
Onde o seu filho poderá viver.


Marcelino dos Santos – poeta luso-moçambicano

segunda-feira, novembro 13, 2006

Ser Tigre

Tigre Branco


O tigre ignora a liberdade do salto
é como se uma mola o compelisse a pular.

Entre o cio e a cópula
o tigre não ama.

Ele busca a fêmea
como quem procura comida.

Sem tempo na alma,
é no presente que o tigre existe.

Nenhuma voz lhe fala da morte.
O tigre, já velho, dorme e passa.

Ele é esquivo,
não há mãos que o tomem.

Não soa,
porque não respira.

É menos que embrião
abaixo do ovo,
infra-sémen.

Não tem forma,
é quase nada, parece morto.

Porém existe,
por isso espera.

Epopéia, canção de amor,
epigrama, ode moderna, epitáfio,

Ele será
quando for tempo disso.


Arménio Vieira – poeta cabo-verdiano

domingo, novembro 12, 2006

Justificação

A Porta do pintor Suzart



Se o nosso canto negro é simultaneamente
baço e ameaçador como o mar
em noites de calmaria;
se a nossa voz é rouca e agreste
só se abrindo em gritos de rebeldia;
se é ao mesmo tempo amarga e doce a nossa poesia
como suco de nhantsumas silvestres;
se é encovado e profundo o nosso olhar
rasgando-se impávido à luz do dia;
se são disformes e gretados nossos pés espalmados
de trilhar caminhos ingratos;
se a nossa alma se fechou para a alegria
e só dá hospedagem ao ódio e à revolta
- não nos culpes a nós, irmão vindo das ruas da cidade.

Que entre nós e o sol se interpuseram
grades feias de escravidão,
grades negras e cerradas a impedir-nos de tostar
de verdadeira felicidade,

Mas ai, irmão vindo das ruas da cidade!
Nosso firme sentido de justiça, nossa indómita vontade a nascer
nossa miséria comum vestida de sacas rotas e imundas,
nossa própria escravidão
serão o calor e o maçarico que fundirão
para sempre as grossas colunas que nos zebravam a vida inteira
e lhe arrancaram todo o jeito doce e inexprimível de vida.


Noémia de Sousa - poetisa moçambicana

quinta-feira, novembro 09, 2006

Ter Uma. Ter Várias

Caras - Ter Uma. Ter Várias

Ter uma só cara
é estar-se nu
em casa
ou no jardim.

Ter várias caras
é mais fácil
que estar-se nu
em qualquer lado.

Ter várias caras
é doença social
de bom tom.

Ter uma só cara
é saúde
ou doença mental.


Tomé Varela da Silva – poeta cabo-verdiano

segunda-feira, novembro 06, 2006

Quando O Luar Caiu

Lua Escura de Ivone Ralha


Quando o luar caiu e
tingiu de escuro os verdes da ilha
cheguei, mas tu já não eras.

Cheguei quando as sombras revelavam
os murmúrios do teu corpo
e não eras.
Cheguei para despojar de limites o teu nome.
Não eras.

As nuvens estão densas de ti
sustentam a tua ausência
recusam o ocaso do teu corpo
mas não és.

Pedra a pedra encho a noite
do teu rosto sem medida
para te construir convoco os dias
pedra a pedra
no teu tempo consumido.

As pedras crescem como ondas
no silêncio do teu corpo.
Jorram e rolam
como flores violentas.
E sangram como pássaros exaustos
no silêncio do teu corpo
onde a noite e o vento se entrelaçam
no vazio que te espera.

Súbito e transparente chegaste
quando falsos deuses subornavam o tempo,
chegaste sem aviso
para despedir o defeso e o frio,
chegaste quando a estrada se abria
como um rio,
chegaste para resgatar sem demora o principio.

Grave o silêncio agarra-se ao teu corpo,
hostil o silêncio agarra-se ao teu corpo
mas já tomaste horas e caminhos
já venceste matos e abismos
já a espessura do obô resplandece em tua testa.

E não me bastam pombas dementes no teu rosto
não bastam consciências soluçante em teu rasto
não basta o delírio das lágrimas libertas.

Cantarei em pranto teu regresso sem idade
teu retorno do exílio na saudade
cantarei sobre esta terra teu destino de rebelde.

Para te saudar no mar e no palma
na manhã dos cantos sem represas
saudarei a praia lisa e o pomar.
Direi teu nome e tu serás.

Conceição Lima – poetisa são-tomense

domingo, novembro 05, 2006

À Tarde

Pintura de Edilson Lima


Não sei o que há de indefinível, vago,
Na morna luz da tarde,
Que nos envolve de um etéreo afago
E como que nos arde.

De nós então parece que se evola
Um pouco de ansiedade
Que tímido cantando acende e rola
Em busca da verdade...

Rui de Noronha - poeta luso-moçambicano

sábado, novembro 04, 2006

Carta de Um Angolano no Estrangeiro

Na Construção Civil


Partimos para a pedreira
Bem sabes que não é isto que queríamos
Não foi com isto que sonhámos,
Partimos para novamente sermos os contratados
E os explorados
Para sermos os sem eira nem beira

Mão de obra barata, partimos
Para construirmos e edificarmos
Com a força dos nossos braços vigorosos
E dos nossos peitos musculosos
Os prédios, as estradas, as pontes...
Em terras alheias, terras distantes

Partimos
Bem sabes que não é isto que queríamos
Tu que sonhaste com doutores e engenheiros
Agora tens-nos carpinteiros e pedreiros
A desenvolver países estrangeiros
Países dos outros

Partimos para sermos espancados
E levarmos bofetadas
Dos cabeças-rapadas
Partimos para sermos desdenhados
E chamados com desprezo, pretos!
Nestes lugares longínquos, lugares incertos

Partimos, mas não queríamos partir
Lá no Menongue queríamos construir
Os hospitais, as escolas, as pontes...
Lá queríamos erguer um arranha-céus
Para então gargalharmos desafiantes
Os brancos europeus
(Mas lá no Menongue, não aqui em Portugal
Que isto nos faz sentir mal)

Partimos
Bem sabes que nos forçaram a partir
Fugimos
Bem sabes que nos nos forçaram a fugir
Mas não é isto que queríamos
Não foi com isto que sonhámos

O que nós queríamos
O que nós desejávamos
É construir uma ponte
E uma auto-estrada gigante
Que unisse os corações dos angolanos,
É isto que desejamos todos estes anos

Partimos
Mas bem sabes mãe, não é isto que queríamos
Não foi com isto que sonhámos!

Décio Bettencourt Mateus – poeta angolano

sexta-feira, novembro 03, 2006

Orfeu Rebelde

Mito de Orfeu  de Marc Chagall em 1977


Orfeu rebelde, canto como sou:
Canto como um possesso
Que na casca do tempo, a canivete,
Gravasse a fúria de cada momento;
Canto, a ver se o meu canto compromete
A eternidade no meu sofrimento.

Outros, felizes, sejam rouxinóis...
Eu ergo a voz assim, num desafio:
Que o céu e a terra, pedras conjugadas
Do moinho cruel que me tritura,
Saibam que há gritos como há nortadas,
Violências famintas de ternura.

Bicho instintivo que adivinha a morte
No corpo dum poeta que a recusa,
Canto como quem usa
Os versos em legitima defesa.
Canto, sem perguntar à Musa
Se o canto é de terror ou de beleza.

Miguel Torga – poeta português

quinta-feira, novembro 02, 2006

Moçambicanto I

Mistério da Água de Suzart


Céleres as águas
zambezeiam pela memória
das almadias do silêncio

nem o zumbido da cigarra
me entontece

nem o troar do tambor
me ensurdece

as vozes que são
sulcos das nossas esperanças

Oh pátria
moçambiquero-te
neste alumbramento
e amar-te
devo-o à carne e ao nervo
deglutidos em revolta.

Da enxada e do martelo
é o verso escrito na palma
da tua mão punho fechado
que nas alavancas das horas
faz refulgir o aço
alfabeticamente parido
Cavador maldito
pronto a decepar o tronco
deste imbondeiro tão pária
carcomido pelas talecuas
sugadoras do seu sangue
e o veneno da nhoca cuspideira
queimando as migalhas bélicas
postadas de cócoras no caminho
dos simples
assim altivo ergues o teu nome
num pais ainda
de nadas e famélicos
desbravando os crápulas bem como os satanhocos.

Sei da Pátria
o nome erguido
a estrela tatuada
no corpo do Indico

uma timbila
canção guerreira


Gulamo Khan – poeta moçambicano

Em colecção "Timbila", no. 8.(AEMO)

quarta-feira, novembro 01, 2006

Lisboa

Cidade de Lisboa


Lisboa que comigo acorda
oiço o vento, arrebata-me para olhar o rio
esse rio tão nosso e tão azul
olho-o e mais me parece um braço de mar
na imensa paleta que nele se desenha
desenhos de encantos e invenções
dos nossos navegantes antigos e de hoje
num abraço fraterno de descobertas imensas
das dores e de alegrias
mas sempre cheios de amores
as casas com as conchas e as cordas
para sempre nos lembrar o sal
os búzios onde aprendemos a ouvir os sons de águas distantes
em fantasias marítimas que mais não são
do que as nossas músicas de ninar
embalada pela cantiga do vento
num dia de sol amarelo e laranja
passeio à beira do Tejo e
nele deposito o meu ver de quem quer encontrar

Sento-me e como um pastel de belém
comprei-o na fábrica ali mesmo em Belém
no meio de paredes cheias de azulejos do século XVIII
figuras e desfiguras em tons de azul,
nem sei quantas salas são, uma, duas à esquerda
três, quatro , cinco, seis à direita
e as fornadas não param de sair
lembro-me da Matilde hoje ela não veio
gostamos de tomar um moscatel e comer um pastel

sentada perto da gigante rosa dos ventos
sinto o que é partir mais uma vez
retornar sempre, na poesia desta cidade
que me ilumina, na sua luz e nas suas sombras

Tempos houve que partiram para novos mundos
foram para ocuparem territórios
fazerem fortuna, realizarem sonhos
também foram para guerrear outros povos
as mulheres portuguesas ficavam
viram os seus homens embarcarem
para novas vidas e para várias mortes
nas dores da perda e na coragem

Antes, há alguns séculos, na volta os que voltavam
traziam-lhes panos de novas cores
especiarias e histórias sem fim de terras fantásticas
depois, há dezenas de anos, na volta os que voltavam
traziam-lhes histórias de guerra e morte, loucuras, demências
outros houve que voltavam com histórias de novas culturas
de terra quente e fértil, horizontes maiores e regressavam
agora como emigrantes em terras de África
mais tarde expulsos da terra do sol, voltaram chorosos
nunca saberemos as suas verdadeiras histórias
certa apenas do encanto dessas longas terras africanas
muitos foram os que emigraram para a Europa
Américas, Ásia e por esse mundo afora
somos um povo de viajantes livres e forçados
Lisboa assiste a todas as partidas
empresta-nos um dos seus mistérios
o de sabermos que voltaremos

Subo algumas ladeiras para ir
ao castelo e dele ver os barcos
mais logo comer umas sardinhas assadas
nas festas populares
iremos dançar e sorrir
da cidade de namoros e encantos
no fado vadio que nos embala de noite
a beber um vinho
Descemos e vamos para a região ribeirinha
cheia de bares e restaurantes
passeamos à noite nas luzes e maresias

Esta cidade de sobe e desce
num ritmo de telhados, azulejos, pedras
praças e bancos de rua
ainda existem bebedouros
e miradouros também
Há praça que se chama das Flores
príncipe real também há
trindade e os seus bifes
sete rios e os seus animais
amoreiras e a pintora Vieira da Silva
na Roma vamos à barata comprar livros
na praça de Londres lemos o jornal
a Av. de paris levava-me a casa
também temos estradas
como da luz e a de Benfica
em Belém os nossos Jerónimos
e centro cultural lindo só por dentro
a nova ponte que não vai para a índia
os cacilheiros lembram-me sempre as bolas de Berlim
e as castanhas assadas
no Campo Grande a 111
a biblioteca nacional e um parque
nas linhas de torres vamos aos novos bairros
e a alguns mais velhos
No arieiro, não há mais areia
mas existem bons restaurantes e de peixe
na João XXI antes da Praça de Espanha
passeio nos Jardins da Gulbenkian
e o fabuloso museu que lá está assim
à nossa espera sempre óptimo
e o das janelas verdes

Não vou continuar neste meu desassossego
escrevo-te a ti Lisboa aqui do outro lado do oceano
certa que me ouvirás nesta canção
trago-te em mim no meu sono mais doce
na minha faceta mais inventiva


Constança de Almeida Lucas – poetisa portuguesa
(Em Poema e desenhos)

Desligado

Pintura de Ntaluma



Era bom se
amanhecesse
neste sossego
presente
sem pensar
no futuro
nem mesmo
no castigo
que o livro
evoca
era bom
se obedecesse
minha alma
sem ter que
obedecer
as estrelas
as árvores
e as raízes
era bom se
meu coração
cantasse
a canção
de liberdade
sem ter que recorrer
aos ancestrais,
ancestrais
escondidos
no embondeiro
ou talvés
neste ar impuro...
era bom
que olhasses
p’ra mim
como humano
não escolhido
mas também
humano de bem
como o infinito!


Domi Chirongo – poeta moçambicano

terça-feira, outubro 31, 2006

T. S. Eliot The Shadows Of Rainbow

A Busca de Suzart


(Ao Ricardo Rangel e ao Kok Nam)

1. The formal word exact without vulgarity
A história agora é o Iraque, já que nós, bronzeos,
e a história somos o molde. Na voz do sangue,
há sempre um negro ou cigano de violão azul.

Há um tempo para as estrelas dormirem
e outro para fazerem amor; quer dizer,
copular de olhos acesos ou já mortiços.

E inútil esbracejar ante os verdugos.
Diriam: espera assim, vergastado, pois virá
a escuridão. Teremos luz, o vinho, a dança, a orgia,
porque, sabes, os cavalos também se abatem. E as flores!
(Não é cada poema o caixão, o epitáfio, o ilegível mármore?)

2. Temos, há muito, sibilas, na boca e na garganta índicas.
Angoche ou Zavala são só luzes fixas pela "Nikon"?!
Temos a perturbação no vórtice das aves, na plena
rotação de iluminações luarentas; e há veios raivosos
de conversas cerca das gazelas e da pose eterna das garças.
Há rostos no oculto e este cheira a crime, a incursão
de uma balada de tiros, com odor perfeito, único,
do espumoso aberto às nossas 24 horas. Mas é do lar
da amizade ou da submissão? As praias e as reservas
devoram turistas e seus iates, aviões a jacto (ou, poeta,
da jactância?), pela agitação de tanto cascalho marinho.

And do not think of the fruit of action

3. É inútil esbracejar, se hispar a artéria do jazz
de um encenado morremorrer na Julius Nyerere
ou nos pês-agás da Coop. Ei-lo, o grito de Átila!
E ele tem alvos; não cessa o que, ímpio, enlameia
esta tecla (secas, fome; dilúvios, miséria!) de Dali,
de três metros suficientes para um poeta dizê-lo:
"Temos a cama franca, a mulher, útil paixão!"

Into another intensity; o fim é sempre evolução.


Heliodoro Baptista - poeta luso-moçambicano

quinta-feira, outubro 19, 2006

Discurso no Parlamento

Actual Presidente da República de Angola



Um dia, encho-me de coragem
E vou mesmo discursar no parlamento
Confesso que fiz juramento
De ir a pé até lá
De entrar naquela sala,
Para discursar a minha mensagem

Um dia, apareço nas câmaras da televisão
Verdade mesmo, não é ilusão
Apareço com o meu rosto maltratado
Com o meu rosto de drogado
Para pedir um ponto de ordem
Aos senhores deputados,
Eu mesmo que vivo do outro lado da margem

Já sei que vão olhar com indignação
Para os meus pés descalços
Para os meus calções rotos
E para os meus magritos braços
Já consigo imaginar os vosso rostos
De indignação e estupefacção

Mas mesmo assim eu vou mesmo discursar
Em plena assembleia nacional
Assim mesmo, com este meu visual
De menino de rua votado ao abandono
De menino de rua cão sem dono
Eu vou à assembleia nacional falar

Assim mesmo, sem convite
E sem ser chamado
Eu, que não sei falar português de escola
Vou entrar naquela sala
Para falar com os senhores deputados
Eu vou lá sem convite, acredite!

E antes de me porem andar à paulada
Antes de me mandarem calar à porrada
Vou rasgar o meu peito
Para vocês escutarem o grito
De tanto sofrimento vivido
De tanto sofrimento bebido

E enquanto estiver a ser arrastado
Para fora da assembleia nacional
Eu, menino de rua cão sem dono e drogado
Eu, menino de rua marginal
Ainda terei coragem
Ainda serei capaz
De trovejar a minha mensagem:
POR FAVOR, PÃO, TECTO E PAZ!

Não levem a mal
Mas eu vou mesmo discursar em plena assembleia nacional!


Décio Bettencourt Mateus – poeta angolano

quarta-feira, outubro 18, 2006

Poema da Infância Distante

menina africana

A Rui Guerra


Quando eu nasci na grande casa à beira-mar,
era meio-dia e o sol brilhava sobre o Índico.
Gaivotas pairavam, brancas, doidas de azul.
Os barcos dos pescadores indianos não tinham regressado ainda
arrastando as redes pejadas.
Na ponte, os gritos dos negros dos botes
chamando as mamanas amolecidas de calor,
de trouxas à cabeça e garotos ranhosos às costas
soavam com um ar longínquo,
longínquo e suspenso na neblina do silêncio.
E nos degraus escaldantes,
mendigo Mufasini dormitava, rodeado de moscas.

Quando eu nasci...
– Eu sei que o ar estava calmo, repousado (disseram-me)
e o sol brilhava sobre o mar.
No meio desta calma fui lançada ao mundo,
já com meu estigma.
E chorei e gritei – nem sei porquê.
Ah, mas pela vida fora,
minhas lágrimas secaram ao lume da revolta.
E o Sol nunca mais brilhou como nos dias primeiros
da minha existência,
embora o cenário brilhante e marítimo da minha infância,
constantemente calmo como um pântano,
tenha sido quem guiou meus passos adolescentes,
- meu estigma também.
Mais, mais ainda: meus heterogéneos companheiros
de infância.

Meus companheiros de pescarias
por debaixo da ponte,
com anzol de alfinete e linha de guita,
meus amigos esfarrapados de ventres redondos como cabaças,
companheiros de brincadeiras e correrias
pelos matos e praias da Catembe
unidos todos na maravilhosa descoberta de um ninho de tutas,
na construção de uma armadilha com nembo,
na caça aos gala-galas e beija-flores,
nas perseguições aos xitambelas sob um sol quente de Verão...
– Figuras inesquecíveis da minha infância arrapazada,
solta e feliz:
meninos negros e mulatos, brancos e indianos,
filhos da mainata, do padeiro,
do negro do bote, do carpinteiro,
vindos da miséria do Guachene
ou das casas de madeira dos pescadores,
Meninos mimados do posto,
meninos frescalhotes dos guardas-fiscais da Esquadrilha
– irmanados todos na aventura sempre nova
dos assaltos aos cajueiros das machambas,
no segredo das maçalas mais doces,
companheiros na inquieta sensação do mistério da “Ilha dos navios perdidos”
– onde nenhum brado fica sem eco.

Ah, meus companheiros acocorados na roda maravilhada
e boquiaberta de “Karingana wa karingana”
das histórias da cocuana do Maputo,
em crepúsculos negros e terríveis de tempestades
(o vento uivando no telhado de zinco,
o mar ameaçando derrubar as escadas de madeira da varanda
e casuarinas, gemendo, gemendo,
oh inconsolavelmente gemendo,
acordando medos estranhos, inexplicáveis
das nossas almas cheias de xituculumucumbas desdentadas
e reis Massingas virados jibóias...)
Ah, meus companheiros me semearam esta insatisfação
dia a dia mais insatisfeita.

Eles me encheram a infância do sol que brilhou
no dia em que nasci.
Com a sua camaradagem luminosa, impensada,
sua alegria radiante,
seu entusiasmo explosivo diante
de qualquer papagaio de papel feito asa
no céu de um azul tecnicolor,
sua lealdade sem código, sempre pronta,
– eles encheram minha infância arrapazada
de felicidade e aventuras inesquecíveis.

Se hoje o sol não brilha como do dia
em que nasci, na grande casa,
à beira do Índico,
não me deixo adormecer na escuridão.
Meus companheiros me são seguros guias
na minha rota através da vida.
Eles me provaram que “fraternidade” não é mera palavra bonita
escrita a negro no dicionário da estante:
ensinaram-me que “fraternidade” é um sentimento belo, e possível,
mesmo quando as epidermes e a paisagem circundante
são tão diferentes.

Por isso eu CREIO que um dia
o sol voltará a brilhar, calmo, sobre o Índico.
Gaivotas pairarão, brancas, doidas de azul
e os pescadores voltarão cantando,
navegando sobre a tarde ténue.

E este veneno de lua que a dor me injectou nas veias
em noite de tambor e batuque
deixará para sempre de me inquietar.

Um dia,
o sol iluminará a vida.
E será como uma nova infância raiando para todos.


Noémia de Sousa – poeta moçambicana
29 de Abril de 1950

domingo, outubro 15, 2006

Classificado Literário

Classificados


Precisa-se de moça
De fino trato.

Para momento agradável
De elaboração
estético-poética.

De mão leves
e idéias firmes.

Que saiba digitar e
passar os dedos
Sem machucar as palavras.

Que tenha habilidade
Para mobilizar a platéia.

Que saiba utilizar
Meios seguros
para finais bombásticos.

Que não seja escandalosa
Mas entenda de prosa.

Que saiba manter a neutralidade:
Entre: maiúsculas e minúsculas;
orações subordinadas e coordenadas;
sujeito e predicado.

Que tenha objetivos diretos
Mas nunca dispense o objeto indireto.

Que saiba intrigar
Sem criar mutreta.

Que construa tramas
Sem destruir corações.

Que pratique boas ações
Principalmente as em alta.

Não precisa estourar o pregão
Mas que saiba evitar a queda da bolsa.
Pois boa moça
Não vacila com bolsa.

Que saiba dar
Tratos a bola,
ou então
Bolar contratos.

Armar bom contrato
É um raro exemplo
de fino trato.

Que seja por extensão
Contra os maus tratos.

Que saiba fazer
A ligação entre a defesa e o ataque.

Que não pratique faltas violentas
Nem precise jogar na zaga.

Ah!!!
E muito importante
Não seja zangada !

Que tenha alegria
E não entre em fria.

Que saiba dar passes
Na Zona do Agrião.

Se quiser aproveitar
Pode fazer uma boa salada
orgânica, sem agro-tóxicos.

De preferência, salada-de-frutas
Com as frutas da estação
Aproveitando que no Rio
É sempre verão.

Oferecemos:
Trama complexa
Enredo Vigoroso
Episódios Completos,
Sem finais incertos.
Suspense Garantido
Vaga no elenco
Direito autoral
e
Roteiro original!


Ricardo Muniz de Ruiz – poeta brasileiro
"Cosme Velho, 10 de outubro de 2006."

sexta-feira, outubro 13, 2006

A Rectidão da Água; O Crescimento

A Rectidão da Água


a rectidão da água; o crescimento
das avenidas, ao anoitecer, sob a nua
vibração dos faróis;

o laço, mesmo, das portas só
entreabertas, onde a luz
silenciosa se demora;

são memórias, decerto, de um anterior
esquecimento, uma inocente
fadiga das coisas,

como os corpos calados, abandonados
na véspera da guerra, o teu
jeito para

o desalinho branco das palavras,
altas as
asas de nuvens no clarão do céu

em vão rigor abrindo
o destinado enigma: assim
desconhecer-te cada dia mais

ausente de recados e colheitas,
em assustado bosque, em sombra
clareira,

ao risco dos rios frívolos descendo
seixos polidos, desinscritos,
imóveis movendo

a luz do dia;
a margem recortada, aonde vivem
ausentes e seguros, os luminosos

animais do inverno;
assim são na verdade os muros claros;
assim respira o tempo, a terra intensa.


António Franco Alexandre – poeta português
Em "A Pequena Face"

quinta-feira, outubro 12, 2006

A Billie Holiday, Cantora

Cantora  Billie Holiday


Era de noite e no quarto aprisionado em escuridão
apenas o luar entrara, sorrateiramente,
e fora derramar-se no chão.
Solidão. Solidão. Solidão.

E então,
tua voz, minha irmã americana,
veio do ar, do nada nascida da própria escuridão...
Estranha, profunda, quente,
vazada em solidão.

E começava assim a canção:
“Into each heart some rain must fall...”
Começava assim
e era só melancolia
do princípio ao fim,
como se teus dias fossem sem sol
e a tua alma aí, sem alegria...

Tua voz irmã, no seu trágico sentimentalismo,
descendo e subindo,
chorando para logo, ainda trémula, começar rindo,
cantando no teu arrastado inglês crioulo
esses singulares “blues”, dum fatalismo
rácico que faz doer
tua voz, não sei porque estranha magia,
arrastou para longe a minha solidão...

No quarto às escuras, eu já não estava só!
Com a tua voz, irmã americana, veio
todo o meu povo escravizado sem dó
por esse mundo fora, vivendo no medo, no receio
de tudo e de todos...
O meu povo ajudando a erguer impérios
e a ser excluído na vitória...
A viver, segregado, uma vida inglória,
de proscrito, de criminoso...

O meu povo transportando para a música, para a poesia,
os seus complexos, a sua tristeza inata, a sua insatisfação...

Billie Holiday, minha irmã americana,
continua cantando sempre, no teu jeito magoado
os “blues” eternos do nosso povo desgraçado...
Continua cantando, cantando, sempre cantando,
até que a humanidade egoísta ouça em ti a nossa voz,

e se volte enfim para nós,
mas com olhos de fraternidade e compreensão!


Noémia de Sousa - poetisa Moçambicana

terça-feira, outubro 10, 2006

Menino de Bairro de Zinco

Crianças de Moçambique


Menino de bairro de zinco
Amigo da aldeia de palha
Sobe o cajueiro menino
Que a tua mãe não ralha
Menino de bairro de zinco

Com bolas de trapo e cordel
Carrinhos de arame e cana
Baloiços na mangeira
E as construções de lama
Menino de bairro de zinco

Menino filho da guerra
Nos jardins de canaviais
Corre, corre menino
Que o mato nunca é demais
Menino de bairro de zinco

Trazes um sorriso de Havana
E os olhos negros de Bombaim
Um poema de Lisboa
O meu Ìndico é assim

De dia o sol te transpira
À noite a lua te bronzeia
Corre corre menino
Que na aldeia já há fogueira
Menino de bairro de zinco

Há fogueira e batucada
P'ra teu corpo temperar
Depois, adormeces na esteira
Até amanhã o sol raiar
Menino de bairro de zinco


Gonzaga Coutinho – poeta moçambicano

quarta-feira, outubro 04, 2006

Ndumbu

Pintura de Ivone Ralha
Pintura de Ivone Ralha


O estranho
Em cima de mim
Que me penetra brutal e sem carinho
É um desconhecido
E tem o meu consentimento contrariado,
Quando chegará ao fim?

O homem
Que faz uso do meu corpo
Transformando-o em farrapo
E em trapo também
Nunca vi antes
Só agora nestes instantes

O estranho bêbedo
De mau hálito
Que comprime o seu peito
Contra os meus treze anos
E afaga os meus seios pequenos
É um desconhecido, o safado

O estranho sujo
No interior do meu sexo
Que depois sai molhado e frouxo
Eu não vejo
Pois penso na família desaparecida
E na casa destruída

O estranho que me enoja
Quando me beija
Não possui a minha alma
Nem alcança o meu íntimo,
Encontra-me distante
E do meu corpo ausente

O sujeito (estranho)
Que depois me entrega o dinheiro
De que tanto necessito (e muito me envergonho)
Nunca foi meu parceiro
Nunca esteve comigo
E tão pouco alguma vez foi meu amigo,
É um desconhecido
E logo-logo será esquecido


Ndumbu – mulher de rua, prostituta


Décio Bettencourt Mateus – poeta angolano

domingo, outubro 01, 2006

Os Monangambas

Suzart - Afrika

Pintura de Suzart


Rooonca-os o camião
no jingololo da rua
Eles vão negros
e levam o sol no peito

Monanbambééé...! Monangambééé...!

Passam esquinas de cimento
passam largas avenidas
E ferem-se berros e silvos
Golpeia neles o vento

Monangambééé...! Monangambééé...!

Levam nos rostos firmeza
jimbamba de sonho e terra
Vão de frente para os gritos
Vão-lhes sentindo a dureza

Monangambééé...! Monangambééé...!

Deixam rastos nas estradas
(já é horizonte o seu manto)
pistas reencontradas
e punhos cerrados de espanto

Monangambééé...! Monangambééé...!

Passam os que servem a vida
com a força do seu suor
Ficam nas ruas os desígnios
que dos seus passos nasceram

Monangambééé...! Monangambééé...!


Arnaldo Santos - poeta angolano

O Quinto Império

Padrão dos Descobrimentos em Belém


Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!

Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raíz --
Ter por vida sepultura.

Eras sobre eras se somen
No tempo que em eras vem.
Ser descontente é ser homem.
Que as forças cegas se domem
Pela visão que a alma tem!

E assim, passados os quatro
Tempos do ser que sonhou,
A terra será teatro
Do dia claro, que no atro
Da erma noite começou.

Grécia, Roma, Cristandade,
Europa -- os quatro se vão
Para onde vai toda idade.
Quem vem viver a verdade
Que morreu D. Sebastião?

Fernando Pessoa - poeta português
Na "mensagem"

sexta-feira, setembro 29, 2006

A Meu favor

Modelo Dinamarquesa Helenan Christensen


A meu favor
Tenho o verde secreto dos teus olhos
Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
O tapete que vai partir para o infinito
Esta noite ou uma noite qualquer

A meu favor
As paredes que insultam devagar
Certo refúgio acima do murmúrio
Que da vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde a aventura recomeça.

Alexandre O’neill – poeta português

Em, «Poesias Completas 1951-1986»,
Imprensa Nacional, Lisboa, 1990.

quinta-feira, setembro 28, 2006

Canção do Silêncio

Amanhecer de Samuel Vincente

Pintura de Samuel Vincente



Ouvindo o silêncio das coisas remotas,
Distingo legendas que os outros não
lêem...
Vislumbro paisagens confusas, remotas,
- Silhuetas de imagens que muitos não
vêem!...

Desvendo os mistérios da selva distante,
Aonde costuma rugir o leão...
- Arroios cantando, num som murmurante,
Anharas perdidas p'ra além do sertão...

Capim verdejante nas humidas chanas,
Lençol de esmeralda que o sol vai
corando...
Matizes da selva, luar das savanas,
Mabecos fugindo, pacacas pastando...

Silêncio das noites sombrias, caladas,
Segredos da selva, murmúrios da aragem...
-Holongos ligeiros, fugindo, em manadas,
Regatos correndo por entre a folhagem...

Latidos de hienas em torno dos quimbos,
Já dentro da noite, se a fome as aperta;
Quimbundas alegres, sachando os arimbos
Depois que o som cavo do goma as desperta

Chingufos ao longe – rufar permanente –
Chamando ao batuque de intensa folganca...

E os pretos, gingando pra trás e pra
frente,
Agitam as ancas na febre da dança!...

E a lua, do alto – qual "hostia boiante" –

Envolve o cenário num manto sidério...
- Canção do silêncio da selva distante,
Bem poucos entendem teu som de mistério!
...


M. Correia da Silva
Em " Cantares de Angola "

quarta-feira, setembro 27, 2006

Dos Povos Buscamos a Força

Os Inteligentes


Não basta que seja pura e justa
a nossa causa
É necessário que a pureza e a justiça
existam dentro de nós.

Dos que vieram
e conosco se aliaram
muitos traziam sobras no olhar
intenções estranhas.

Para alguns deles a razão da luta
era só ódio: um ódio antigo
centrado e surdo
como uma lança.

Para alguns outros era uma bolsa
bolsa vazia (queriam enchê-la)
queriam enchê-la com coisas sujas
inconfessáveis.

Outros viemos.
Lutar pra nós é ver aquilo
que o Povo quer
realizado.
É ter a terra onde nascemos.
É sermos livres pra trabalhar.
É ter pra nós o que criamos
Lutar pra nós é um destino –
é uma ponte entre a descrença
e a certeza do mundo novo.

Na mesma barca nos encontramos.
Todos concordam – vamos lutar.

Lutar pra quê?
Pra dar vazão ao ódio antigo?
ou pra ganharmos a liberdade
e ter pra nós o que criamos?

Na mesma barca nos encontramos
Quem há-de ser o timoneiro?
Ah as tramas que eles teceram!
Ah as lutas que aí travamos!

Mantivemo-nos firmes: no povo
buscámos a força
e a razão

Inexoravelmente
como uma onda que ninguém trava
vencemos.
O Povo tomou a direcção da barca.

Mas a lição lá está, foi aprendida:
Não basta que seja pura e justa
a nossa causa
É necessário que a pureza e a justiça
existam dentro de nós

Agostinho Neto – poeta angolano

terça-feira, setembro 26, 2006

As Sombras Correm

Sombras Brancas



As sombras correm soltas pela noite
à cata de suas formas apagadas,
tecendo solidões que são abismos,
sinais que são multiplicadas máscaras


de uma face movida pela luz
que desata do feixe o movimento
e se dispersa em fugas para atar-se
à unidade que flui do próprio tempo.


Os cabelos transformam-se em ramagens,
as árvores caminham. As florestas
combatem. Exercita a quadratura
do circulo o artesão moldando a pedra,


polindo arestas, desenhando a fórmula
da sombra em sua ordenação geométrica
como um todo partido que se reúne
pelo esforço que move o vento, a terra.


As águas correm negras, desatadas
das formas, com seus silvos de serpentes
nervosas sobre o leito das estradas,
luzindo a cor sinistra das correntes.


(...)


Sobre a boca formosa adormecida
tímidas aves, asas assustadas
sobrevoavam ligeiras com os bicos
famintos, a procura do arrozal


perdido na quietude da calada
planície verde agora adormecida
pela brisa da morte tal um mar
de pedra a desafiar a clara vida.


O rosto transformara-se em metal
e recusava dar-se ao movimento
dos círculos em vôo a procura
da cantora partida: apenas vinha


com a quietude amarga o frio som
de prata antiga da serena chuva
a derramar-se em finas linhas de água
nas figuras sonâmbulas da rua.


Eu a vi por detrás da clara máscara
armada para a vida com bandeiras
desfraldadas no corpo. A face dura
denunciava a cantora, ave guerreira.


Vi pedrarias na corrente verde
da fala, o brilho de esmeralda ardia
e inundava de líquidas vogais
a sala prisioneira da poesia.


(...)


Eu vi a palavra fora de sua boca
desenrolar o manto da poesia.
O som criava pássaros alegres
que voavam e desapareciam.


O encanto era tal que se perdia
a imagem verdadeira, e vi a palavra
transformar-se de nítido metal
em labareda, em fogo, em sombra alada,


com as asas abertas sobre nós:
o rumor da poesia urdia a voz
e o pássaro incendiava-se na luz
que sua fala espargia (negro sol).

Foed Castro Chamma – poeta brasileiro

domingo, setembro 24, 2006

Estátua Falsa

Estátua Falsa de Sigmar Polke

Estátua de Sigmar Polke


Só de ouro falso os meus olhos se douram;
Sou esfinge sem mistério no poente.
A tristeza das coisas que não foram
Na minha'alma desceu veladamente.


Na minha dor quebram-se espadas de ânsia,
Gomos de luz em treva se misturam.
As sombras que eu dimano não perduram,
Como Ontem, para mim, Hoje é distância.


Já não estremeço em face do segredo;
Nada me aloira já, nada me aterra:
A vida corre sobre mim em guerra,
E nem sequer um arrepio de medo!


Sou estrela ébria que perdeu os céus,
Sereia louca que deixou o mar;
Sou templo prestes a ruir sem deus,
Estátua falsa ainda erguida ao ar...

Mário Sá Carneiro – poeta português
(Em Paris, 5 de Maio de 1913)

sexta-feira, setembro 22, 2006

A Mulemba Secou

Velho Africano


No barro da rua,
Pisadas, por toda a gente,
Ficaram as folhas
Secas, amareladas
A estalar sob os pés de quem passava.

Depois o vento as levou...

Como as folhas da mulemba
Foram-se os sonhos gaiatos
Dos miúdos do meu bairro.

(De dia,
Espalhavam visgo nos ramos
E apanhavam catituis,
Viúvas, siripipis
Que o Chiquito da Mulemba
Ia vender no Palácio
Numa gaiola de bimba.

De noite,
Faziam roda, sentados,
A ouvir, de olhos esbugalhados
A velha Jaja a contar
Histórias de arrepiar
Do feitiçeiro Catimba.)

Mas a mulemba secou
E com ela,
Secou também a alegria
Da miúdagem do bairro;

O Macuto da Ximinha
Que cantava todo o dia
Já não canta.
O Zé Camilo, coitado,
Passa o dia deitado
A pensar em muitas coisas.
E o velhote Camalundo,
Quando passa por ali,
Já ninguém o arrelia,
Já mais ninguém lhe assobia,
Já faz a vida em sossego.

Como o meu bairro mudou,
Como o meu bairro está triste
Porque a mulemba secou...

Só o velho Camalundo
Sorri ao passar por lá!...

Aires de Almeida Santos – poeta luso-angolano

quinta-feira, setembro 21, 2006

Canção Na Morte de nga-Caxombo

 Imagem de Ivone Ralha

Pintura de Ivone Ralha



Olho nga-Caxombo ali
na esteira
deitado morto
a todo comprimento

Vejo-o caminhar sem descanso
do Amboim ao Seles
do Seles ao Quipeio
outra vez ao Seles
rotas sem rota mato longe
quem que sabia?

Tipóia o ombro pesava que pesava
duramente Zua
e voz de Kalandu
voz serena do sertão
ele a escutava
através do fogo
através da água
o jeito sem raízes
de amar o coração das coisas.

Olho-o pela vez última
na luz rasante desse dez de Julho
a barba à monangamba
cavada sua negra face
morto
deitado morto
a todo o comprimento.


João-Maria Vilanova – poeta (presumível) angolano

(No reino de Caliban II - antologia
Panorâmica de poesia africana de
Expressão portuguesa)

terça-feira, setembro 19, 2006

Poema à Mãe Angola

Desenho Choqwe



Avança Mãe Angolana
E dá o melhor de ti própria
Nesta luta de vida ou de morte
Avança pelos rios perigosos
Pelos pântanos lodosos
Pela savanas sem fim

Avança pelo incomensurável horror da guerra
Entre a chuva de bombas que ilumina a terra
Mas avança porque é necessário

Avança com teus braços feitos asas
Abertas sobre o solo pátrio
Para proteger os teus filhos

Não te detenhas nos gemidos do vento
Não prendas à forma das flores
Sublima o amor neste momento

Avança Mãe Angolana
Que a tua coragem fará vacilar os soldados
Os soldados que já foram meninos
Os soldados
A que o fascismo tolheu a vontade
E que caminham sobre os cadáveres das crianças
Com risos sarcásticos de vingança...

Avança Mãe Angolana
Na terra ensopada de sangue
Dor e lágrimas
Causadas pela guerra

Que ela florescera
Sustentada pelo teu querer
E terás para os teus filhos
O sol aberto nas pétalas
E a serenidade dos heróis
Depois de ganha a batalha.

Eugénia Neto – poetisa luso-angolana

segunda-feira, setembro 18, 2006

Vaidosa

Imagem de Thierry Le Goues

Foto de Thierry Le Goues


Dizem que tu és pura como um lírio
E mais fria e insensível que o granito,
E que eu que passo por aí por favorito
Vivo louco de dor e de martírio.

Contam que tens um modo altivo e sério,
Que és muito desdenhosa e presumida,
E que o maior prazer da tua vida,
Seria acompanhar-me ao cemitério

Chamam-te a bela imperatriz das fátuas,
A déspota, a fatal, o figurino,
E afirmam que és um molde alabastrino,
E não tens coração, como as estátuas.

E narram o cruel martirológio
Dos que são teus, ó corpo sem defeito,
E julgam que é monótono o teu peito
Como o bater cadente dum relógio.

Porém eu sei que tu, que como umópio
Me matas, me desvairas e adormeces
És tão loira e doirada como as messes
E possuis muito amor... muito amor-próprio.

Cesário Verde – poeta português

domingo, setembro 17, 2006

Valsa dum Homem Carente

Sonho de valsa

Pintura de Marcio Melo


Se alguma vez te parecer
ouvir coisas sem sentido
não ligues, sou eu a dizer
que quero ficar contigo
e apenas obedeço
com as artes que conheço
ao princípio activo
que rege desde o começo
e mantém o mundo vivo

Se alguma vez me vires fazer
figuras teatrais
dignas dum palhaço pobre
sou eu a dançar a mais nobre
das danças nupciais
vê minhas plumas cardeais
em todo o seu esplendor
sou eu, sou eu, nem mais
a suplicar o teu amor

É a dança mais pungente
mão atrás e outra à frente
valsa de um homem carente
mão atrás e outra à frente
valsa de um homem carente

Carlos Tê – compositor e poeta português

sexta-feira, setembro 15, 2006

Terra Bensuada

Terra Bensuada

Pintura de Ivone Ralha


A manta rota dos Deuses
cobriu o sol
e a terra
mais sagrada
tombou na suprema escuridão...

Horizontes roxos pairam no ar
há mortos, perdidos, ausentes
e a terra chora baixinho.

Ao luar, caju dorido,
ressoa manso o tambor
amordaçado pelo truar dos canhões,
bazucas, murteiros, obuses.

A manta rota dos Deuses
cobriu o sol
e a terra
mais sagrada
chora só e baixinho
morte, agonia, tormento.

-Que Deus fadou o teu Destino
oh terra bensuada
exangue, exausta em sangue?

-Que Deus fadou o teu Destino
oh terra bensuada
queimada dormindo em guerra?

Namibiano Ferreira – poeta luso-angolano

quinta-feira, setembro 14, 2006

Poema do Semba

Baía de Luanda


O Semba Semba é canto de avenida
É chuva de primavera

Semba é morte Semba é vida
O Semba Semba é o meu choro dolente
Olhar nossa vida de frente
Semba é suor Semba é gente

O canto do Semba o canto do Semba ele é nobre

O canto do Semba ele é rico o canto do Semba ele é pobre
O canto do Semba ele é rico o canto do Semba ele é pobre

O Semba no morro Semba no morro é fogueira

O Semba que traz liberdade o Semba da nossa bandeira
O Semba que traz liberdade o Semba da nossa bandeira

O Semba, Semba é kanuco de rua

Na escola da vida ele cresce de tanto apanhar se habitua
Na escola da vida ele cresce de tanto apanhar se habitua

A voz do meu Semba a voz do meu Semba urbano

É a voz que me faz suportar o orgulho em ser Angolano
É a voz que me faz suportar o orgulho em ser Angolano

Paulo Flores - Cantor e poeta luso-angolano

terça-feira, setembro 12, 2006

Soneto da Intimidade

Malangatana

Quadro de Malangatana Ngwenya Valente


Nas tardes de fazenda há muito azul demais.
Eu saio as vezes, sigo pelo pasto, agora
Mastigando um capim, o peito nu de fora
No pijama irreal de há três anos atrás.


Desço o rio no vau dos pequenos canais
Para ir beber na fonte a água fria e sonora
E se encontro no mato o rubro de uma amora
Vou cuspindo-lhe o sangue em torno dos currais.


Fico ali respirando o cheiro bom do estrume
Entre as vacas e os bois que me olham sem ciúme
E quando por acaso uma mijada ferve


Seguida de um olhar não sem malícia e verve
Nós todos, animais, sem comoção nenhuma
Mijamos em comum numa festa de espuma.


Vinicius de Moraes – poeta brasileiro

segunda-feira, setembro 11, 2006

A Mãe Vazia

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Pintura de Etona


Todos os dias eu via
A mulher sentada, vazia,
Num cruzamento: agonia.
Com um filho no colo,
De quem passava pedia.
Amamentava e pedia.

Tinha dois outros,
Com quem brigava e pedia.
Os filhos inquietos corriam,
Brincavam na rua e pediam,
Mas, de perto da mãe, não saíam

Que paradoxo eu via:
Uma plenitude vazia,
Os filhos dali não saíam.

Nagibe de Melo Jorge Neto – poeta brasileiro

domingo, setembro 10, 2006

Batuque ao Longe

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Do fundo da noite
a mesma toada batendo.
(É noite de medo?)


A mesma toada por sobre os telhados,
trazendo mensagens que tombam desfeitas.


(Coladas aos vidros
há vozes de greda).

A mesma toada roçando na porta,
batendo.

Por sobre as ramadas, calcando o capim,
em volta da serra, caindo do espaço,
em ecos de outrora por todos os lados.


Gloria de Sant'anna – poetisa luso-moçambicana

quinta-feira, setembro 07, 2006

Meu Canto Europa

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Agora,
agora que todos os contactos estão feitos,
as linhas dos telefones sintonizadas,
os espaços de morses ensurdecidos,
os mares de barcos violados,
os lábios de risos esfrangalhados,
os filhos incógnitos germinados,
os frutos do solo encarcerados,
os músculos definhados
e o símbolo da escravidão determinado,

Agora,
agora que todos os contactos estão feitos,
com a coreografia do meu sangue coagulada,
o ritmo do meu tambor silencioso,
os fios do meu cabelo embranquecidos,
meu coito denunciado e o esperma esterilizado,
meus filhos de fome engravidados,
minha ânsia e meu querer amordaçados,
minhas estátuas de heróis dinamitadas,
meu grito de paz com chicotes abafado,
meus passos guiados como passos de besta,
e o raciocínio embotado e manietado,

Agora,
agora que me estampaste no
rosto
os primores da tua civilização,
eu te pergunto, Europa,
eu te pergunto:
AGORA?


Tomás Medeiros – poeta são-tomense

quarta-feira, setembro 06, 2006

Bem, Hoje Que Estou Só e Posso Ver

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Bem, hoje que estou só e posso ver
Com o poder de ver do coração
Quanto não sou, quanto não posso ser,
Quanto se o for, serei em vão,
Hoje, vou confessar, quero sentir-me
Definitivamente ser ninguém,
E de mim mesmo, altivo, demitir-me
Por não ter procedido bem.
Falhei a tudo, mas sem galhardias,
Nada fui, nada ousei e nada fiz,
Nem colhi nas urtigas dos meus dias
A flor de parecer feliz.
Mas fica sempre, porque o pobre é rico
Em qualquer cousa, se procurar bem,
A grande indiferença com que fico.
Escrevo-o para o lembrar bem.

Fernando Pessoa – poeta português