domingo, abril 30, 2006

Cantos do Meu País




Canto as mãos que foram escravas
nas galés
corpos acorrentados a chicote
nas américas


Canto cantos tristes
do meu País
cansado de esperar
a chuva que tarde a chegar


Canto a Pátria moribunda
que abandonou a luta
calou seus gritos
mas não domou suas esperanças


Canto as horas amargas
de silêncio profundo
cantos que vêm da raiz
de outro mundo
estes grilhões que ainda detêm
a marcha do meu País


Julião Soares Sousa – poeta guineense
(Um novo amanhecer, 1996)

quarta-feira, abril 26, 2006

Poema Mestiço


Escrevo Mediterrâneo
na serena voz do Índico

Sangro norte
em coração do sul

Na praia do oriente
sou areia náufraga
de nenhum mundo

Hei-de
começar mais tarde

Por ora
sou a pegada
do passo por acontecer

Mia Couto – escritor e poeta luso-moçambicano

terça-feira, abril 25, 2006

Ao Meu Belo Pai Ex-emigrante

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Pai:
As maternas palavras de signos
vivem e revivem no meu sangue
e pacientes esperam ainda a época de colheita
enquanto soltas já são as tuas sentimentais
sementes de emigrante português
espezinhadas no passo de marcha
das patrulhas de sovacos suando
as coronhas de pesadelo.


E na minha rude e grata
sinceridade não esqueço
meu antigo português puro
que me geraste no ventre de uma tombasana
eu mais um novo moçambicano
semiclaro para não ser igual a um branco qualquer
e seminegro para jamais renegar
um glóbulo que seja dos Zambezes do meu sangue.


E agora
para além do antigo amigo Jimmy Durante a cantar
e a rir-se sem nenhuma alegria na voz roufenha
subconsciência dos porquês de Buster keaton sorumbático
achando que não valia a pena fazer cara alegre
e um Algarve de amendoeiras florindo na outra costa
Ante os meus sócios Bucha e Estica no "écran" todo branco
e para sempre um zinco tap-tap de cacimba no chão
e minha Mãe agonizando na esteira em Michafutene
enquanto tua voz serena profecia paternal: - "Zé:
quando eu fechar os olhos não terás mais ninguém."


Oh, Pai:
Juro que em mim ficaram laivos
do luso-arábico Algezur da tua infância
mas amar por amor só amo
e somente posso e devo amar
esta minha bela e única nação do Mundo
onde minha mãe nasceu e me gerou
e contigo comungou a terra, meu Pai.
E onde ibéricas heranças de fados e broas
se africanizaram para a eternidade nas minhas veias
e teu sangue se moçambicanizou nos torrões
da sepultura de velho emigrante numa cama de hospital
colono tão pobre como desembarcaste em África
meu belo Pai ex-português.


Pai:
O Zé de cabelos crespos e aloirados
não sei como ou antes por tua culpa
o "Trinta-Diabos" de joelhos esfolados nos mergulhos
à Zamora nas balizas dos estádios descampados
avançado-centro de "bicicleta" à Leónidas no capim
mortífera pontaria de fisga na guerra aos gala-galas
embasbacado com as proezas do Circo Pagel
nódoas de cajú na camisa e nos calções de caqui
campeão de corridas no "xituto" Harley-Davidson
os fundilhos dos calções avermelhados nos montes
do Desportivo nas gazetas à doca dos pescadores
para salvar a rapariga Maureen O'Sullivan das mandíbulas
afiadas dos jacarés do filme de Trazan Weissmuller
os bolsos cheios de tingolé da praia
as viagens clandestinas nas traseiras gã-galhã-galhã
do carro eléctrico e as mangas verdes com sal
sou eu, Pai, o "Cascabulho" para ti
e Sontinho para minha Mãe
todo maluco de medo das visões alucinantes
de Lon Chaney com muitas caras.


Pai:
Ainda me lembro bem do teu olhar
e mais humano o tenho agora na lucidez da saudade
ou teus versos de improviso em loas à vida escuto
e também lágrimas na demência dos silêncios
em tuas pálpebras revejo nitidamente
eu Buck Jones no vaivém dos teus joelhos
dez anos de alma nos olhos cheios da tua figura
na dimensão desmedida do meu amor por ti
meu belo algarvio bem moçambicano!


E choro-te
chorando-me mais agora que te conheço
a ti, meu pai vinte e sete anos e três meses depois
dos carros na lenta procissão do nosso funeral
mas só Tu no caixão de funcionário aposentado
nos limites da vida
e na íris do meu olhar o teu lívido rosto
ah, e nas tuas olheiras o halo cinzento do Adeus
e na minha cabeça de mulatinho os últimos
afagos da tua mão trémula mas decidida sinto
naquele dia de visitas na enfermaria do hospital central.


E revejo os teus longos dedos no dirlim-dirlim da guitarra
ou o arco da bondade deslizando no violino da tua aguda tristeza
e nas abafadas noites dos nossos índicos verões
tua voz grave recitando Guerra Junqueiro ou Antero
e eu ainda Ricardino, Douglas Fairbanks e Tom Mix
todos cavalgando e aos tiros menos Tarzan analfabeto
e de tanga na casa de madeira e zinco
da estrada do Zichacha onde eu nasci.


Pai:
Afinal tu e minha mãe não morreram ainda bem
mas sim os símbolos Texas Jack vencedor dos índios
e Tarzan agente disfarçado em África
e a Shirley Temple de sofisma nas covinhas da face
e eu também e que musámos.
E alinhavadas palavras como se fossem versos
bandos de sécuas ávidos sangrando grãos de sol
no tropical silo de raivas eu deixo nesta canção
para ti, meu Pai, minha homenagem de caniços
agitados nas manhãs de bronzes
chorando gotas de uma cacimba de solidão nas próprias
almas esguias hastes espetadas nas margens das úmidas
ancas sinuosas dos rios.


E nestes versos te escrevo, meu Pai
por enquanto escondidos teus póstumos projectos
mais belos no silêncio e mais fortes na espera
porque nascem e renascem no meu não cicatrizado
ronga-ibérico mas afro-puro coração.
E fica a tua prematura beleza realgarvia
quase revelada nesta carta elegia para ti
meu resgatado primeiro ex-português
número UM Craveirinha moçambicano!

José Craveirinha – poeta luso-moçambicano

segunda-feira, abril 24, 2006

Para lá da praia


Baía morena da nossa terra
vem beijar os pézinhos agrestes
das nossas praias sedentas,
e canta, baía minha
os ventres inchados
da minha infância,
sonhos meus, ardentes
da minha gente pequena
lançada na areia
da Praia Gamboa morena
gemendo na areia
da Praia Gamboa.

Canta, criança minha
teu sonho gritante
na areia distante
da praia morena.
Teu teto de andala
à berma da praia.
Teu ninho deserto
em dias de feira.
Mamã tua, menino
na luta da vida
gamã pixi à cabeça
na faina do dia
maninho pequeno, no dorso ambulante
e tu, sonho meu, na areia morena
camisa rasgada,
no lote da vida,
na longa espera, duma perna inchada
Mamã caminhando p'ra venda do peixe
e tu, na canoa das águas marinhas ...

— Ai peixe à tardinha
na minha baía...
Mamã minha serena
na venda do peixe.

Alda do Espírito Santo – poetisa são-tomense

domingo, abril 23, 2006


Phil Borges, Barogoi, Kenya, 1997
"Só é digno da vida e da liberdade
quem todos os dias
se esforça por as conquistar. "
Goethe

Infância


Eu corria através dos bosques e das florestas
Eu corno o ruído vibrante de um bosque desvendado,
Eu via belos pássaros voando pelos campos
E parecia ser levado por seus cantos.

Subitamente, desviei os meus olhos
Para o alto mar e para os grandes celeiros
Cheios da colheita dos bravos camponeses
Que, terminando o dia, regressavam à noite entoando

Canções tradicionais das selvas africanas
Que lhes lembravam os ódios ardentes
Dos velhos. Subitamente, uma corça gritou
Fugindo na frente dos leões esfomeados.

Aos saltos, os leões perseguiram a corça
Derrubando as lianas e afugentando os pássaros.
A desgraçada atingiu a planície
E os dois reis breve a alcançaram.

António Baticã Ferreira – poeta guinieense

Poema sobre viver...


O vento ruge.
Urgente é a necessidade do apego,
do apelo, do destroçar o tempo,
do cobiçar o caminho urgente
do vento que ruge.

Urgente é negociar a vida,
procurar saídas, esquecer partidas.
Urgente é viver sem medo.
Urgente é viver com tempo.
Urgente é viver.

Há gente que vive urgente
sem o apego à vida,
sem o apego ao tempo,
sem dar tempo à vida.
Há gente que só vive.

Há gente que só vive só,
que só sonha só,
que vive sonhando só
sem sentir que o vento urgente
traz o tempo para ser vivido.

Eu vivo o momento agora
que me dá prazer de correr com o vento.
Eu vivo o tempo presente
que me traz a paz.
Eu não vivo só.

Marco Dias – poeta brasileiro

sexta-feira, abril 21, 2006

Oh! Liberdade!


Ilustração de Ivone Ralha



Se eu pudesse
pelas frias manhãs
acordar tiritando
fustigado pela ventania
que me abre a cortina do céu
e ver, do cimo dos meus montes,
o quadro roxo,
de um perturbado nascer do sol
a leste de Timor

Se eu pudesse
pelos tórridos sóis
cavalgar embevecido
de encontro a mim mesmo
nas serenas planícies do capim
e sentir o cheiro de animais
bebendo das nascentes
que murmurariam no ar
lendas de Timor

Se eu pudesse
pelas tardes de calma
sentir o cansaço
da natureza sensual
espreguiçando-se no seu suor
e ouvir contar as canseiras
sob os risos
das crianças nuas e descalças
de todo o Timor

Se eu pudesse
ao entardecer das ondas
caminhar pela areia
entregue a mim mesmo
no enlevo molhado da brisa
e tocar a imensidão do mar
num sopro da alma
que permita meditar o futuro
da ilha de Timor

Se eu pudesse
ao cantar dos grilos
falar para a lua
pelas janelas da noite
e contar-lhes romances do povo
a união inviolável dos corpos
para criar filhos
e ensinar-lhes a crescer e a amar
a Pátria Timor!

Xanana Gusmão - poeta timorense
Cipinang, 8 de Outubro de 1995

Exílio Interior

Ilustrações de Ivone Ralha




Escrito diante do retrato
de meu velho pai
inexplicavelmente
este é o sitio por mim escolhido
ruas longas e estreitas
paredes marcadas pelo tempo
sugerindo gastos rostos femininos com jimbumba
Horizontes confundindo-se com camas
onde o arrebol troca com a terra
abençoados ósculos de corpo inteiro
Paisagens virgens em virgens olhares
de úteros expostos aos céus
como na longínqua cidade rural
onde por felicidade nascera meu pai
inexplicavelmente este é o sitio
sobrevoado por fábulas
estórias de ontem
e hinos guerreiros de sempre
sobretudo hinos do amor guerreiro no terreiro
que exalam dos corpos andantes dos rios
com margens grávidas de pescadores
também prenhe de músicas por cantar
e versos por pintar
nas tetas das sereias empoleiradas nos coqueiros
inexplicavelmente
este sitio lembra-me uma criança
todas as manhãs
e a uma mulher em todas outras horas.

Nankhova Trajano – poeta angolano

Dádiva

Ilustrações de Ivone Ralha



Quisera ofertar-te
o vôo dos pássaros,
o momento do nascimento,
o segundo antes do beijo,
o sonho que precede o adormecer.

Quisera entregar-te
os olhos baços,
o arrependimento,
o leite de cada seio,
o pôr-do-sol e o amanhecer.

Quisera dar-te
as quatro estações,
as cerimoniosas fases da lua,
a Vênus de Millus inteiramente nua,
a neve caindo ao alvorecer.

Quisera doar-me a ti por inteiro,
pela eternidade do instante,
colher-te os frutos,
semear-te os versos
e cantar-te o amor
[que sinto].

Quisera, apenas quisera,
acompanhar-te, em silêncio, pela vida,
calar as vozes que perturbam teu sono,
deitar-me à tua sombra
de frondoso tronco.

Quisera fazer-te brisa e flor do campo
e deixar que despertasses
com meu nome nos lábios
- única palavra em teu vernáculo -
a me sorrir, presente.


Lílian Maial - poetisa brasileira

quinta-feira, abril 20, 2006

Rotina


Hoje acordei
Cedo levantei
Embora ensonado
Lá me preparei
Hoje é mais um dia
Mais um que começa
Preparo-me à pressa
Saiu de casa
De casa fecho a porta
Não há movimento
A rua parece morta
Caminho cantando
Cantando vou sozinho
Sem companhia
Não avisto nenhum vizinho
Chego à paragem
Para o autocarro ainda falta
Espero um pouquinho
Está cá sempre a mesma malta
Entro no autocarro
Olha! Está cá a Sara
Ao longo do trajecto
A conversa nunca para
Até chegar à escola
Muita coisa vi
Enquanto estive no autocarro
Baboseiras ouvi
Posto na sala de aula
Olho para a professora
Observo-a e penso
– Ai como és gostosa
Acaba uma aula
Logo começa outra
Ao entardecer
Apresso-me a estar de volta
Saiu da escola
Com os amigos vou à paragem
Apanho o autocarro
Em grupo tenho outra imagem
Posto em casa,
Vejo televisão
Alimento-me
E as novelas completam o meu serão
Olho para as horas
Já passa da meia-noite
Concluo:
– Bem, mais um dia foi-se.


Didier Ferreira - poeta angolano - são-tomense / Mc Slay

quarta-feira, abril 19, 2006

Poema para Carlos Drummond de Andrade


É útil redizer as coisas
as coisas que tu não viste
no caminho das coisas
no meio do teu caminho.

Fechaste os teus dois olhos
ao bouquet das palavras
que estava a arder na ponta do caminho
o caminho que esplende os teus dois olhos.

Anuviaste a linguagem de teus olhos
diante da gramática da esperança
escrita com as manchas de teus pés descalços
ao percorrer o caminho das coisas.

Fechaste os teus dois olhos
aos ombros do corpo do caminho
e apenas viste uma pedra
no meio do caminho.

No caminho doloroso das coisas.


Jõao Maimona – poeta angolano

terça-feira, abril 18, 2006

Sede


Eu quero agora mulher formosa
para saciar-me a natureza minha,
multiplicar-me todo o meu valor,
pois no meu leito o corpo quer calor.

O meu desejo todo escancarado
vou prolongar com pompa no esplendor.
Procuro, na real, fêmea saborosa,
o corpo pleno corado de amor.

Não pode ser beleza fria,
tampouco da ingênua se abrindo em flor.
Quero mulher, fruta madura crua.

Pratico artimanha que cora o prior.
Só serve a Eva, amiga da serpente,
e que saiba acalmar o trovador.


Ricardo Muniz de Ruiz - poeta brasileiro

domingo, abril 16, 2006

Entre o calor das tuas pernas


Entre o calor das tuas pernas
sobressai firme e vigorosa
numa atitude de lascúdia
a rosa dos meus desejos.
E vejo em cada curva das suas pétalas
milhões de gestos provocantes
que me inundam o corpo
com milhões de riachos prateados

Entre o calor das tuas pernas
desabrocha muda e esperançosa
a rosa dos meus desejos.
Por ela vivo uma ânsia profunda
de ver chegar o dia
em que me deliciarei diluído
no seu aroma inebriante.

E nesse dia,
milhões de forças gritantes
percorrerão o meu sangue
e galgarei sobre a montanha sagrada
abrindo trilhos por entre o mar de flores
penetrarei embriagado
nas cavernas negras e alagadas
de paredes desejosas
e descarregarei
todo o meu furor bastante
sobre os recantos mais profundos
dos subterrâneos conquistados
do jardim afrodisíaco

E então
regressarei flácido mas ressuscitado
e sobre a montanha sagrada
dormirei um sonho profundo!

Amadeu Kazunde – poeta moçambicano

A Sombra das Galeras


Ah! Angola, Angola, os teus filhos escravos
nas galeras correram as rotas do Mundo.
Sangrentos os pés, por pedregosos trilhos
vinham do sertão, lá do sertão, lá bem do fundo
vergados ao peso das cargas enormes...
Chegavam às praias de areias argênteas
que se dão ao Sol ao abraço do mar...
... Que longa noite se perde na distância!

As cargas enormes
os corpos disformes.
Na praia, a febre, a sede, a morte, a ânsia
de ali descansar
Ah! As galeras! As galeras!
Espreitam o teu sono tão pesado
prostrado do torpor em que mal te arqueias.
Depois, apenas pestanejam as estrelas,
o suplício de arrastar dessas correias.

Escravo! Escravo!

O mar irado, a morte, a fome,
A vida... a terra... o lar... tudo distante.
De tão distante, tudo tão presente, presente
como na floresta à noite, ao longe, o brilho
duma fogueira acesa, ardendo no teu corpo
que de tão sentido, já não sente.

A América é bem teu filho
arrancado à força do teu ventre.

Depois outros destinos dos homens, outros rumos...
Angola vais na sede da conquista.
Hoje no entrechoque das civilizações antigas
essa figura primitiva se levanta
simples e altiva.
O seu cântico vem de longe e canta
ausências tristes de gerações passadas e cativas.
E onde vão seus rumos? Onde vão seus passos?
Ah! Vem, vem numa força hercúlea
gritar para os espaços
como os dardos do Sol ao Sol da vida
no vigor que em ti próprio reverberas:

- Não sou cativo!
A minha alma é livre, é livre
enfim!
Liberto, liberto, vivo...

Mais... porque esperas?
Ah! Mata, mata no teu sangue
o presságio da sombra das galeras!

Alexandre Dáskalos – Poeta Angolano
(Poesia, 1961)

sexta-feira, abril 14, 2006

A Pedra no Caminho


Toma essa pedra em tua mão,
toma esse poliedro imperfeito,
duro e poeirento. Aperta em
tua mão esse objecto frio,
redondo aqui, acolá acerado.

Segura com força esse granito
bruto. Uma pedra, uma arma
em tua mão. Uma coisa inócua,
todavia poderosa, tensa,
em sua coesão molecular,
em suas linhas irregulares.

Ao meio-dia em ponto, na avenida
ensolarada, tu és um homem
um pouco diferente. Ao meio-dia
na avenida tu és um homem
segurando uma pedra.
Segurando-a com amor e raiva.

Rui Knopfli - poeta luso-moçambicano

quinta-feira, abril 13, 2006

O Feitiço do Batuque


Sinto o som do batuque nos meus ossos,
o ritmo do batuque no meu sangue.
É a voz da marimba e do quissange,
que vibra e plange dentro de minh'alma,
- e meus sonhos, já mortos, já destroços,
ressuscitam, povoando a noite calma.

Tenho na minha voz ardente o grito
desses gritos febris das batucadas,
nas noites em que o fogo das queimadas
parece caminhar para o infinito...
E meus versos são feitos desse canto,
que o vento vai cantando, em riso e pranto,
quanto o batuque avança desflorando
o silêncio de virgens madrugadas.

Músicos negros, colossos,
e negras bailarinas, sensuais,
tocam e dançam, cantando,
agitando meus ímpetos carnais.
O batuque ressoa-se nos ossos,
seu ritmo louco no meu sangue vibra,
vibra-me nas entranhas, fibra a fibra,
sinto em mim o batuque penetrando
- e já sou possuído de magia!

A batucada tem feitiço eterno.
O batuque de dor e de alegria,
que sinto no meu ser, dentro de mim,
nunca mais terá fim,
nem mesmo alem do Céu e além do Inferno!

Geraldo Bessa Victor – Poeta Angolano

Doble Trouble

Ilustrações de Ivone Ralha



Quis vestir esta lua,
Meu fato mais bonito,
Engomado e arejado,
Flor vermelha na lapela,
Guitarra acesa na mão,
Minha arma de trova.

Quis brindar as estrelas,
Fazer oferendas á lua,
Dançar uma valsa,
Beber teus pomos,
Enxugar minha jornada,
Arrasar a praça,
Teu abraço me vestindo.

Quis minha parra de barro,
Quebrá-la e branquear minha alma,
Lavá-la na enxurrada de beijos,
Saltar, e, atirar para ontem,
Rosas ressequidas de espera,
Lançar sementes estrelas.

Quis tantas, tantas vezes
Fazer poema fresco,
Dizer às gaivotas e ao vento
Que em suas asas levassem,
Notícias flores ao mundo,

Mas,

Minha alma parra,
Nação sabe ainda
A cor de tua alegria...



Mutxhini Ngwenya – Poeta Moçambicano
Chimoio, 09.06.97

Diamante Lapidado


Escrevo, porque não consigo ver-te,
a proliferação da inércia,
não me permite confabular.

És um diamante lapidado,
és um ser precioso que encanta
e é encantado,
revelas no oculto a subtileza altiva,
deixas-me permanecer na ilusão.

Diamante provoca a perdição,
porém ofuscas-me com artes enigmáticas
deixando-me com esta angústia excruciante,
em virtude de não te ter.

És um diamante cobiçado,
uma jóia não rara, mas eterna.
Jóia ingénua que obliquamente
me faz permanecer na quimera
do tormento silente.

Diamante, pedra tão bela...
confere-nos o poder absoluto instantâneo,
faz-nos fantasiar com um mundo
para além do paraíso celeste,
permite-nos viver perfidamente
no sonho da realidade em simultêneo.

O seu brilho abraça-nos infatigavelmente,
deixando-nos inexoravelmente extasiados,
com a sua dominação sedutora.


Nelson Ngungu Rossano - poeta neo-afro-lusomestiço