quarta-feira, maio 31, 2006

Filho


Nicolau, menino, entra.
Onde estiveste, Nicolau,
que trazes a arrastar
o teu brinquedo morto?

Nicolau, menino, entra.
Vem dizer-me onde foi que tu estiveste
e a estrela fugiu das tuas mãos.

Tens comigo o teu catre de lona velha.
Deita-te, Nicolau, o fantasma ficou lá longe.

Dorme sem medo.
Porão, roça, medos imediatos,
tudo ficou lá longe.

Quando acordares a jornada será mais longa.

Nicolau, menino,
onde foi que deixaste
o corpo que te conheci?
Deus há-de querer que o sono te venha depressa
no meu catre.

Oswaldo Alcântara – poeta cabo-verdiano

Retrato de Corpo Inteiro


No azul do teu peito
ensolarado
há espelhos de cristal
multiplicando imagens.

Emergem risos
lágrimas
promessas
olhares infantis
perdidamente
infinitamente
apaixonados
adolescentes.

A vida renasce
das tuas mãos
trémulas
entrelaçadas
— há muito tempo entrelaçadas —
reencontradas.

No espaço secreto
da memória,
nosso retrato
– De corpo inteiro –
É o quadro mais bonito
que se pode iluminar.

Anna Maria Feitosa – poetisa portuguesa

Que é São Tomé


I

Quatro anos de contrato
com vinte anos de roça.

Cabelo rapado
blusa de branco
dinheiro no bolso
calção e boné

Eu foi São Tomé!

Calção e boné
boné e calção
cabelo rapado
dinheiro na mão...

Agora então volto
mas volto outra vez
à terra que é nossa.
Acabou-se o contrato
dos anos na roça

Eu vi São Tomé!

Cuidado com o branco
que anda por lá...
Não sejas roubado
cuidado! cuidado!
Dinheiro de roça
ganhaste-o. Té dá
galinhas... e bois...
e terras... Depois
já tiras de graça
o milho da fuba,
o leite, a jinguba
e bebes cachaça.

Eh! Vai descansado,
dinheiro guardado
no bolso da blusa.

Que é São Tomé?

Cabelo rapado
blusa de branco
dinheiro no bolso
calção e boné.


II

Este mente, aquele mente
outro mente... tudo igual.
O sítio da minha embala
aonde fica afinal?

A terra que é nossa cheira
e pelo cheiro se sente.

A minha boca não fala
a língua da minha gente.

Com vinte anos de contrato
nas roças de São Tomé
só fiz quatro.

Voltei à terra que é minha.
É minha? É ou não é?

Vai a rusga, passa a rusga
em noites de fim do mundo.

Quem não ficou apanhado?
Vai o sono, vem o sono
vai o sono
quero ficar acordado.
No meio da outra gente
lá ia naquela corda
mas acordei de repente.

Quero ficar acordado.

Onde está o meu dinheiro,
onde está o meu calção
meu calção e meu boné?
O meu dinheiro arranjado
nas roças de São Tomé?

Vou comprar com o dinheiro
sagrado da minha mãe
tudo quanto a gente come:
trinta vacas de fome,
galinhas... de papelão.

Vou trabalhar nesta lavra
em terra que dizem nossa
quatro anos de contrato
em vinte anos de roça.

Eu foi São Tomé!

Cabelo rapado
blusa de branco
dinheiro no bolso
calção e boné.

Aiuéé!

Alexandre Dáskalos – poeta angolano

Reza, Maria (1ª Versão)


Suam no trabalho as curvadas bestas
e não são bestas
são homens, Maria!

Corre-se a pontapés os cães na fome dos ossos
e não são cães
são seres humanos, Maria!

Feras matam velhos, mulheres e crianças
e não são feras, são homens
e os velhos, as mulheres e as crianças
são os nossos pais
nossas irmãs e nossos filhos, Maria!

Crias morrem á míngua de pão
vermes na rua estendem a mão a caridade
e nem crias nem vermes são
mas aleijados meninos sem casa, Maria!

Do ódio e da guerra dos homens
das mães e das filhas violadas
das crianças mortas de anemia
e de todos os que apodrecem nos calabouços
cresce no mundo o girassol da esperança

Ah! Maria
põe as mãos e reza.
Pelos homens todos
e negros de toda a parte
põe as mãos
e reza, Maria!

José Craveirinha – poeta moçambicano

Uma Negra Convertida


Minha avó negra, de panos escuros,
da cor do carvão...
Minha avó negra de panos escuros
que nunca mais deixou...

Andas de luto,
toda és tristeza...
Heroína de ideias,
rompeste com a velha tradição
dos cazumbis, dos quimbandas...

Não xinguilas, no óbito.
Tuas mãos de dedos encarquilhados,
tuas mãos calosas da enxada,
tuas mãos que preparam mimos da Nossa Terra,
quitabas e quifufutilas – ,
tuas mãos, ora tranquilas,
desfilam as contas gastas de um rosário já velho...

Teus olhos perderam o brilho;
e da tua mocidade
só te ficou a saudade
e um colar de missangas...

Avozinha,
as vezes, ouço vozes que te segredam
saudades da tua velha sanzala,
da cubata onde nasceste,
das algazarras dos óbitos,
das tentadoras mentiras do quimbanda,
dos sonhos de alambamento
que supunhas merecer...
E penso que... se pudesses,
talvez revivesses
as velhas tradições!

Mário António – poeta angolano

domingo, maio 28, 2006

Eu cantarei de amor tão docemente


Eu cantarei de amor tão docemente,
Por uns termos em si tão concertados,
Que dois mil acidentes namorados
Faça sentir ao peito que não sente.

Farei que amor a todos avivente,
Pintando mil segredos delicados,
Brandas iras, suspiros magoados,
Temerosa ousadia e pena ausente.

Também, Senhora, do desprezo honesto
De vossa vista branda e rigorosa,
Contentar-me-ei dizendo a menor parte.

Porém, pera cantar de vosso gesto
A composição alta e milagrosa
Aqui falta saber, engenho e arte.

Luís Vaz de Camões – poeta português

quinta-feira, maio 25, 2006

Sou Mestiço

Pintura de Candido Portinari


Sou Mestiço
Onça-Tigre
Sou mestiço, sim senhor
Sem pretensões de pureza
Eu sou plebe, sem nobreza
Puxei isto a meu avô
Sua cor não desbotou
Filho deste continente
De africano descendente
Nascido português
E do índio, todos os três
Mesclaram-se naturalmente

Pedro Álvares Cabral
Aportou lá na Bahia
Onde o índio existia
Como filho natural
Descoberta emocional
No tempo da renascença
Na Europa era imensa
A luta dos navegantes
Por estes mares atlantes
Em busca de recompensa

Da África veio o terceiro
Pra aumentar a produção
Da negra população
Deste povo brasileiro
Cujo sangue altaneiro
Nas veias corre sereno
Igualzinho ao nazareno
Que nasceu há dois mil anos

Sofreu o africano
Como um Cristo moreno
Muita riqueza criou
Durante a escravidão
Este negro nosso irmão
Que o branco seqüestrou
Foi grande trabalhador
Nos garimpos e na roça

Seu sangue puro reforça
Esta miscigenação
Da cor fumê de carvão
Característica de força
Sua cor até desbota
Esmaece no mulato
Não tenho o menor recato
Da descendência ignota

Todos são compatriotas
Outra postura não banco
Jamais neguei, sou franco
Afinal é meu irmão
Componentes de ação
O negro, o índio e o branco

Já na quinta geração
Mulato, mameluco
E o cafuzo formam o suco
De toda caldeação
De ponta a ponta a nação
Sem o menor preconceito
Deitou-se no mesmo leito
Pra procriar no Brasil
Um povo bom e viril
Merecedor de respeito

Sou cafuzo, sou mulato
Puxado a mameluco
Não sou híbrido eunuco
As leis de Mendel acato
Das três raças sou retrato
Pelo direito trabalho
Não sou novo, sou grisalho
Com denodo e coragem
Assumo a mestiçagem

Milton Freire de Carvalho - poeta brasileiro

quarta-feira, maio 24, 2006

O "Adeus" de Teresa


A vez primeira que eu fitei Teresa,
Como as plantas que arrasta a correnteza,
A valsa nos levou nos giros seus
E amamos juntos E depois na sala
"Adeus" eu disse-lhe a tremer co'a fala

E ela, corando, murmurou-me: "adeus."

Uma noite entreabriu-se um reposteiro...
E da alcova saía um cavaleiro
Inda beijando uma mulher sem véus
Era eu Era a pálida Teresa!
"Adeus" lhe disse conservando-a presa

E ela entre beijos murmurou-me: "adeus!"

Passaram tempos sec'los de delírio
Prazeres divinais gozos do Empíreo
... Mas um dia volvi aos lares meus.
Partindo eu disse – "Voltarei! Descansa!... "
Ela, chorando mais que uma criança,

Ela em soluços murmurou-me: "adeus!"

Quando voltei era o palácio em festa!
E a voz d'Ela e de um homem lá na orquestra
Preenchiam de amor o azul dos céus.
Entrei! Ela me olhou branca surpresa!
Foi a última vez que eu vi Teresa!

E ela arquejando murmurou-me: "adeus!"

Antônio de Castro Alves – poeta brasileiro

terça-feira, maio 23, 2006

Amargos como os frutos

Pintura de Peter David's
"Dizes-me coisas tão amargas como os frutos..."
Kwanyama

Amado, porque voltas
com a morte nos olhos
e sem sandálias
como se um outro te habitasse
num tempo
para além
do tempo todo

Amado, onde perdeste tua língua de metal
a dos sinais e do provérbio
com o meu nome inscrito

onde deixaste a tua voz
macia de capim e veludo
semeada de estrelas

Amado, meu amado
o que regressou de ti
é tua sombra
dividida ao meio
é um antes de ti
as falas amargas
como os frutos

(Dizes-me coisas amargas como os frutos)

Ana Paula Ribeiro Tavares – poetisa angolana

Intimidade


Quando, sorrindo, vais passando, e toda
Essa gente te mira cobiçosa,
És bela – e se te não comparo a rosa,
E que a rosa, bem vês, passou de moda...

Anda-me as vezes a cabeça a roda,
Atrás de ti também, flor caprichosa!
Nem pode haver, na multidão ruidosa,
Coisa mais linda, mais absurda e doida.

Mas e na intimidade e no segredo,
Quando tu coras e sorris a medo,
Que me apraz ver-te e que te adoro, flor!

E não te quero nunca tanto (ouve isto)
Como quando por ti, por mim, por Cristo, Juras
– mentindo – que me tens amor...

Antero de Quental – poeta português

segunda-feira, maio 22, 2006

Eis-me


Eis-me
Tendo-me despido de todos os meus mantos
Tendo-me separado de adivinhos mágicos e deuses
Para ficar sozinha ante o silêncio
Ante o silêncio e o esplendor da tua face

Mas tu és de todos os ausentes o ausente
Nem o teu ombro me apoia nem a tua mão me toca
O meu coração desce as escadas do tempo em que não moras
E o teu encontro
São planícies e planícies de silêncio

Escura é a noite
Escura e transparente
Mas o teu rosto está para além do tempo opaco
E eu não habito os jardins do teu silêncio
Porque tu és de todos os ausentes o ausente

Sophia de Mello Breyner Andresen

Animais Doentes


Animais doentes as palavras
Também elas
Vespas formigas cabras
De trote difícil e miúdo
Gafanhotos alerta
Pombas vomitadas pelo azul
Bichos de conta bichos que fazem de conta
Pequeníssimas pulgas uma sílaba só
Lagartos melancólicos
Estúpidas galinhas corriqueiras
Tudo tão doente tão difícil
De manejar de lançar de provocar
De reunir
De fazer viver

Ou então as orgulhosas
Palavras raras
Plumas de cores incandescentes
Altos gritos no aviário
E o branco sem uso
Imaculado
De certas aves da solidão

Para dizer
Queria palavras tão reais como chamas
E tão precárias
Palavras que vivessem só o tempo de dizer a sua parte
No discurso de fogo
Logo extintas na combustão das próximas
Palavras que não esperassem
Em sal ou em diamante
O minuto ridículo precioso raro
De sangrar a luz a gota de veneno
Cativa das entranhas ociosas.

Alexandre O'Neill – poeta português

domingo, maio 21, 2006

A Voz Que Se Cala


Amo as pedras, os astros e o luar
Que beija as ervas do atalho escuro,
Amo as águas de anil e o doce olhar
Dos animais, divinamente puro.

Amo a hera que entende a voz do muro
E dos sapos, o brando tilintar
De cristais que se afagam devagar,
E da minha charneca o rosto duro.

Amo todos os sonhos que se calam
De corações que sentem e não falam,
Tudo o que é Infinito e pequenino!

Asa que nos protege a todos nós!
Soluço imenso, eterno, que é a voz
Do nosso grande e mísero Destino!...

Florbela Espanca – poetisa portuguesa

sexta-feira, maio 19, 2006

O Macaco Declamando


Um mono, vendo-se um dia
Entre brutal multidão,
Dizem que lhe deu na cabeça
Fazer uma pregação.

Creio que seria o tema
Indigno de se tratar;
Mas isto pouco importava,
Porque o ponto era gritar.

Teve mil vivas, mil palmas,
Proferindo à boca cheia
Sentenças de quinze arrobas,
Palavras de légua e meia.

Isto acontece ao poeta,
Orador, e outros que tais;
Néscios o que entendem menos
É o que celebram mais.

Elmano Sadino – poeta português

domingo, maio 14, 2006

No ombro da minha mãe a pedra de multidão

Pintura de Naguib



Entre dois rostos! Duas ilhas
Não há pensamento
que não seja
Esta multidão de pedra & vento
Esta península em movimento

Infância! Se teu pai trazia às costas
O sol as salinas o deserto de Sahel
A minha mãe era então
Uma pirâmide longínqua
No saxofone de pedra
Da minha avó

Ó pedra de amor ó pedra de amigo

Todos os dias ! As mãos de Deus
Colocam uma rocha
No ombro de cada ilha
Todos os dias! Os braços do arquipélago
Colocam um rochedo
No ombro de cada homem

E grávidas ! Pejadas de pedra
E belas ! Como penínsulas
As mulheres lavram
As mulheres abalam
a pobreza na colina
a miséria no monte
a desgraça na montanha

Corsino Fortes – poeta cabo-verdiano

Dança do Desempregado


Essa é a dança do desempregado
Quem ainda não dançou tá na hora de aprender
A nova dança do desempregado
Amanhã o dançarino pode ser você

E vai levando um pé na bunda vai
Vai por olho da rua e não volta nunca mais
E vai saindo vai saindo sai
Com uma mão na frente e a outra atrás
E bota a mão no bolsinho (Não tem nada)
E bota a mão na carteira (Não tem nada)
E bota a mão no outro bolso (Não tem nada)
E vai abrindo a geladeira (Não tem nada)
Vai procurar mais um emprego (Não tem nada)
E olha nos classificados (Não tem nada)
E vai batendo o desespero (Não tem nada)
E vai ficar desempregado

Essa é a dança do desempregado
Quem ainda não dançou tá na hora de aprender
A nova dança do desempregado
Amanhã o dançarino pode ser você

E vai descendo vai descendo vai
E vai descendo até o Paragüai
E vai voltando vai voltando vai
"Muamba de primeira olhaí quem vai?"
E vai vendendo vai vendendo vai
Sobrevivendo feito camelô
E vai correndo vai correndo vai
O rapa tá chegando olhaí sujô!...
E vai rodando a bolsinha (Vai, vai!)
E vai tirando a calcinha (Vai, vai!)
E vai virando a bundinha (Vai, vai!)
E vai ganhando uma graninha
E vai vendendo o corpinho (Vai, vai!)
E vai ganhando o leitinho (Vai, vai!)
É o leitinho das crianças (Vai, vai!)
E vai entrando nessa dança

Essa é a dança do desempregado
Quem ainda não dançou tá na hora de aprender
A nova dança do desempregado
Amanhã o dançarino pode ser você

E bota a mão no bolsinho (Não tem nada)
E bota a mão na carteira (Não tem nada)
E não tem nada prá comer (Não tem nada)
E não tem nada a perder
E bota a mão no trinta e oito e vai devagarinho
E bota o ferro na cintura e vai no sapatinho
E vai roubar só uma vez pra comprar feijão
E vai roubando e vai roubando e vai virar ladrão
E bota a mão na cabeça!! (É a polícia)
E joga a arma no chão e bota as mãos nas algemas
E vai parar no camburão
E vai contando a sua história lá pró delegado
"E cala a boca vagabundo malandro safado"
E vai entrando e olhando o sol nascer quadrado
E vai dançando nessa dança do desempregado

Essa é a dança do desempregado
Quem ainda não dançou tá na hora de aprender
A nova dança do desempregado
Amanhã o dançarino pode ser você

Gabriel o Pensador – poeta e rapper brasileiro

Felizes

Desenho de Dieter Frangenberg


Felizes, cujos corpos sob as árvores
Jazem na húmida terra,
Que nunca mais sofrem o sol, ou sabem
Das doenças da lua.

Verta Eolo a caverna inteira sobre
O orbe esfarrapado,
Lance Netuno, em cheias mãos, ao alto

As ondas estoirando.
Tudo lhe é nada, e o próprio pegureiro
Que passa, finda a tarde,
Sob a árvore onde jaz quem foi a sombra
Imperfeita de um deus,

Não sabe que os seus passos vão cobrindo
O que podia ser,
Se a vida fosse sempre vida, a glória
De uma beleza eterna.

Ricardo Reis – poeta português

sexta-feira, maio 12, 2006

Língua


Mpurukuma, Língua, corpo quase,
o que sou de sobrepostas vozes,
Bayete!

E tu, pássaro da alma, Mpipi adejando
sobre o losango tumultuante de cores,
Templo onde me cerco,
não me abandones, cão inflando para o rio
uma escarninha balada que nos enforca.

Esfumou-se a Torre na praia nocturna,
a preposição que olfactava o nervo
e Ele dorme ainda e expulso.

Quando a palavra surge, inteira, das águas
e os espíritos batem a respiração do batuque,
Ele tacteia os nomes nas abóbadas de sangue
e entra pelo silêncio, dobrando-se
em número.

Leva-o nas tuas asas, ó sombra
que as patas de cinza espargiram no vento,
soluço de Leanor
em saínhos sete de capulanas mil,
Ilha mineral, Mpipi hílare no azul
onde me cego.

Que sinais sobre que mar do exílio ou
som de algas lavando-te o rosto, se inscreveram
em ti, mulher larga no Índico,
língua por dentro dos lábios cavando, obscuro,
um reino por achar?

Língua, Mpurukuma quase.



Mpurukuma: conceito de oralidade em língua makua.
Bayete: saudação.
Mpipi: pássaro.


Luís Carlos Patraquim – poeta luso-moçambicano
Em “Lidemburgo Blues”

Por Uma Sereia de Treva

Pintura de Pierre Oeuvray


sem segredos melhor que nós
ninguém sabe a morte a dois
e como heróis subterrâneos que somos
procuramos a vida por entre as trevas
navegamos algas ao amanhecer
para encontrar um irmão pelas mãos

empresta-me a tua máscara quero saborear
esta melodia ter nos olhos a cor
e antes que o dilúvio se propague
nademos nas profundezas do asco
talvez surja uma sereia de treva
onde possamos pousar o coração
que em fragmentos se dissolve no iodo
da atmosfera que transportamos às costas

sem segredo melhor que nós
ninguém por entre a fresta da porta
da noite apalpa este enigma:
prestar contas ao silêncio dos olhos
e conter a náusea por um instante
ultrapassando o passado hóspede da masmorra
da presente folia ardente transeunte

Francisco Xavier Guita Jr. – poeta moçambicano
Em “Agora e o depois das coisas” (1990-1992)

quinta-feira, maio 11, 2006

Meu Sonho Não Faz Silêncio

Pintura de Malangatana Valente



A história e o tempo
não me deixaram
conhecer avós.

A sabedoria madura,
nunca esteve perto de mim,
os conselhos fraternos,
nunca me chegaram ao peito,
e meus ouvidos espertos,
sempre tiveram sede destes…

A vida leva a
caminhos desesperados,
destinos amargurados,
pela sua inconcretizacão.

Quero plantar sonhos
em terra livre e fértil,
extasiar-me na melodia negra
da tumba jamais vista.

Meu sonho não faz silêncio.
Mas nele escuto o tempo
e a história,
revejo o que nunca vivi,
nesse sonho embarco
no caminho sem volta,
sem saber do meu baluarte.

A história e o tempo
não me deixaram
conhecer avós.

Nelson Ngungu Rossano – poeta neo-afro-lusomestiço

quarta-feira, maio 10, 2006

Amor, pois é palavra essencial


Amor – pois que é palavra essencial
comece esta canção e toda a envolva.
Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,
reúna alma e desejo, membro e vulva.

Quem ousará dizer que ele é só alma?
Quem não sente no corpo a alma expandir-se
até desabrochar em puro grito
de orgasmo, num instante de infinito?

O corpo noutro corpo entrelaçado,
fundido, dissolvido, volta à origem
dos seres, que Platão viu completados:
é um, perfeito em dois; são dois em um.

Integração na cama ou já no cosmo?
Onde termina o quarto e chega aos astros?
Que força em nossos flancos nos transporta
a essa extrema região, etérea, eterna?

Ao delicioso toque do clítoris,
já tudo se transforma, num relâmpago.
Em pequenino ponto desse corpo,
a fonte, o fogo, o mel se concentraram.

Vai a penetração rompendo nuvens
e devassando sóis tão fulgurantes
que nunca a vista humana os suportara,
mas, varado de luz, o coito segue.

E prossegue e se espraia de tal sorte
que, além de nós, além da própria vida,
como activa abstracção que se faz carne,
a ideia de gozar está gozando.

E num sofrer de gozo entre palavras,
menos que isto, sons, arquejos, ais,
um só espasmo em nós atinge o clímax:
é quando o amor morre de amor, divino.

Quantas vezes morremos um no outro,
no húmido subterrâneo da vagina,
nessa morte mais suave do que o sono:
a pausa dos sentidos, satisfeita.

Então a paz se instaura. A paz dos deuses,
estendidos na cama, qual estátuas
vestidas de suor, agradecendo
o que a um deus acrescenta o amor terrestre.

Carlos Drummond de Andrade – poeta brasileiro

segunda-feira, maio 08, 2006

De Longe


Não chores Mãe... Faz como eu, sorri!
Transforma as elegias de um momento
em cânticos de esperança e incitamento.
Tem fé nos dias que te prometi.

E podes crer, estou sempre ao pé de ti,
quando por noites de luar, o vento,
segreda aos coqueirais o seu lamento,
compondo versos que eu nunca escrevi...

Estou junto a ti nos dias de braseiro,
no mar...na velha ponte,... No Sombreiro,
em tudo quanto amei e quis p'ra mim...

Não chores, mãe!... A hora é de avançadas!...
Nos caminhamos certos, de mãos dadas,
e havemos de atingir um dia, o fim...

Alda Lara – poetisa angolana

domingo, maio 07, 2006

Regresso Eterno

Fotografia de Sandra Alves



Altos silêncios da noite e os olhos perdidos,
Submersos na escuridão das árvores
Como na alma o rumor de um regato,
Insistente e melódico,
Serpeando entre pedras o fulgor de uma ideia,
Quase emoção;
E folhas que caem e distraem
O sentido interior
Na natureza calma e definida
Pela vivência dum corpo em cuja essência
A terra inteira vibra
E a noite de estrelas premedita.


A noite! Se fosse noite. . .
Mas os meus passos soam e não param,
Mesmo parados pelo pensamento,
Pelo terror que não acaba e perverte os sentido
A esquina do acaso;
Outros mundos se somem,
Outros no ar luzes reflectem sem origem.
É por eles que os meus passos não param.
E é por eles que o mistério se incendeia.


Tudo é tangível, luminoso e vago
Na orla que se afasta e a ilha dobra
Em balas de precário sonho...
Tudo é possível porque à vida dura
E a noite se desfaz
Em altos silêncios puros.
Mas nada impede o renascer da imagem,
A infância perdida, reavida,
Nuns olhos vagabundos debruçados,
Junto a um regato que sem cessar murmura.

Ruy Cinatti – poeta luso-timorense

sexta-feira, maio 05, 2006

Ponto Histórico


Não é que eu
Seja racista...
Mas existem certas
Coisas
Que só os NEGROS
Entendem.
Existe um tipo de amor
Que só os NEGROS
Possuem,
Existe uma marca no
Peito
Que só nos NEGROS
Se vê,
Existe um sol
Cansativo
Que só os NEGROS
Resistem.

Não é que eu
Seja racista...
Mas existe uma
História
Que só os NEGROS
Sabem contar
... Que poucos podem
Entender.

Éle Semog – poeta afro-brasileiro

quinta-feira, maio 04, 2006

Meu Sonho Não Faz Silêncio

Pintura de Malangatana Valente


Meu sonho jamais faz silêncio
E a ninguém caberá calá-lo
Trago-o como herança que me mantém desperto
Como esta cor não traduzida em versos
Pois se fariam necessários muitos e tantos versos

Meu sonho vara madrugadas
Som alto
De timbales que se arrebatam em cânticos
E trago-o como Olorum na crença
Que não me pune em pecados
Mas
Enche-me o peito grávido de esperanças
Como malungos marchando ao sol de Novembro
Subindo as serras
Defesa e guerra

Meu sonho jamais faz silêncio
É a lança brilhante de Zumbi
A espada de Ogum
É o lê, o rumpi, é o rum
É a furia sem arreios
Terra farta dos anseios
Desacato, ato, sem freios

Vôo livre da águia que não cansa
Me faz erê, me faz criança

Meu sonho jamais faz silêncio
É um griot velho que me conta as lendas
De onde fisga tantas lembranças

E com ele invado chats, pages, sites
Na intimidade de corpos em dança
Perpetuando o gosto pelo correto
Meu sonho é pura herança
Rastro
Dos que plantaram, lutaram, construíram
O que não usufruo
Areia que moldada em vaso
Onde não nos cabe culpas
É lúcido ao sol dos trópicos, charqueado ao frio
É como um fio

Grita alto e bom som
Que o seio do amanhã nos pertence
Carregamos toda pressa

Meu sonho não faz silêncio
E não é apenas promessa
Planta em mim mesmo, na alma
Palmares, Palmares, Palmares
Pelo que de belo, pelo que de farto
Muitos Palmares

Carrega como o vento escritos
Versos de Jônatas, Oliveira, Colina, Semog e Cuti
Alimenta e nutre
Lembrando que esta cor me mantém desperto
E não tenho sustos

Sentinela que tange o eterno quissange
Entende a volúpia do calor que me abriga
Desfaz a mentira, destruindo a intriga

Meu sonho jamais faz silêncio
Como um Ilê Aiyê acordando a liberdade
Descobrindo amante ávido o sexo pulsante da existência
Desejo de navegar todos os mares
Comandando todas as fragatas, naves

E nos lança em um solo de Miles
Nos recria em um solo de Coltrane
Clássico como Marsalis, Jazz como Marsalis

E que nem tentem que faça silêncio
Pois voltaria gritando em um texto de Solynca
ás que completa a trinca
Torna-se um canto de Ella, Graça, Guiguio, Lecy
Gente negra, gente negra
Jamelão, mangueira
Brilho da mais brilhante estrela
Nunca se estanca, bravo se retraduz em sina

Só não lhe cabem
Crianças arrancadas da escola
Pela fome que rasga gargantas
E nos promete vê-las
Alimentadas todas, cultas
Meu sonho é uma negra criança
Que luta

Ergue Quilombos, aqui, ali
Em cada mente, em cada face
Impávidos como Palmares, impávidos Ilês
Em todos os lugares

Meu sonho não faz silêncio
Porque feito de lida
Teimoso como esta cor
Para sempre será desperto e certo
Mais que vivo, é a própria vida.

José Carlos Limeira – poeta afro-brasileiro

quarta-feira, maio 03, 2006

Poemando


Fazer poema é gostoso
É um decifrar de sentimentos
É desabafar consigo mesmo
É relembrar belos momentos

Fazer poema é uma dádiva
inspiração que vai e vem
É ver a vida sempre bela
É amar à distância um alguém

Fazer poema é viver
É ter alma e corpo entrelaçados
É estar em paz consigo mesmo
É amar o próximo e ser amado

Fazer poema às vezes também é sofrer
É sentir solidão, é suplício e chorar
É sufocar no peito a saudade de alguém
É suplantar a tristeza e viver para amar.

Antônio Wilson da Silva – poeta brasileiro

terça-feira, maio 02, 2006

Mameluco


As pernas claras,
Bem delineadas,
Por baixo da discreta mini-saia
Despertam
Meu curioso olhar!

Intrometido,
Quero registrar
Cada detalhe
Da esguia carne!
Percebo
Delicioso Paladar.

Belicoso,
Desperta o canibal.
O inconsciente vai pro Beleléu!
O Tupinambá reencarna.

É meu passado recente:
Há quinhentos anos,
Meu bravo ancestral
Dominava o litoral.

Você não sabe
O perigo que corre
Por deixar assim
Desprotegido
Ao meu olhar
Esse ângulo atrevido!

Ricardo Muniz de Ruiz – poeta brasileiro
Em “Poesia Profana”

segunda-feira, maio 01, 2006

A Prometida

Fotografia de Gordon Parks



Dóli só
Djena sem ninguém
do romance inocente
a tragédia bacilenta

papá homem grande
se meteu
uma vaca
um saco de farinha
um tambor de cana
umas folhas de tabaco

a permuta
a prometida

três
dias
depois
da lua

com fome de amor
boca acre não come
com sede de ternura
garganta seca rejeita água
as lágrimas engrossam
e rolam
no rosto macilento

Djena dezassete chuvas
Djena uma vida por viver
Djena a prometida
Djena mulher de hoje
tem fome
não come
tem sede
não bebe

corpo de mulher
inerte como o silêncio
firme como a recusa
repousa intacta
num sono inviolável

Tony Tcheca – poeta guineense
(Vozes poéticas da lusofonia, Sintra,1999)