quarta-feira, abril 01, 2009

Evocação de Silves




Eia, Abú Bacre, saúda os meus lares em Silves e pergunta-lhes
se, como penso, ainda se recordam de mim.

Saúda o Palácio das Varandas da parte de um donzel
que sente perpétua saudade daquele alcácer.

Ali moravam guerreiros como leões e brancas
gazelas. E em que belas selvas e em que belos covis!

Quantas noites passei divertindo-me à sua sombra
com mulheres de cadeiras opulentas e talhe fatigado

Brancas e morenas que produziam na minha alma
o efeito das espadas refulgentes e das lanças obscuras!

Quantas noites passei deliciosamente junto a um recôncavo
do rio com uma donzela cuja pulseira rivalizava com a curva da corrente!

O tempo passava e ela servia-me o vinho do seu olhar
e outras vezes o do seu vaso e outras o da sua boca.

As cordas do seu alaúde feridas pelo plectro estremeciam-me
como se ouvisse a melodia das espadas nos tendões do colo inimigo.

Ao retirar o seu manto, descobriu o talhe, florescente ramo
de salgueiro, como se abre o botão para mostrar a flor.


Mohâmede Ibne Abade Almutâmide - Rei Poeta
Beja (1040-1095)

domingo, março 29, 2009

Corpo Presente

Malangatana Valente Nguenha


Mais me pesa a terra sobre os olhos
e no lugar do coração. Não era
enfim tão rápido quanto crera.
Não fora esse indício e juraria a ausência
total de sensações. Pesa-me, porém
sobre a cegueira dos olhos e o vago
atroz do coração. Atroz não
porque me doa ou amargure,
mas porque esse ruído débil,
sempre inaudível, companheiro
da primeira à derradeira hora,
súbito cessou,
substituindo-o o horror de insuspeitado
e impenetrável silêncio. Depressa
me habituarei. A insensibilidade
da mão esquerda, sê-lo-á? Ou
será da terra? A terra…
O corpo soma-se-me em terra.
De tosca e anómala não chega
a ser obscena na terra a nudez
final. Aqui neste lugar
não há lembranças da vida. Mais
depressa ainda a vida se esquecerá
de mim e deste escuro mas promissor
tirocínio a uma futura arqueologia.


Rui Knopfli - Poeta luso-moçambicano

quarta-feira, março 25, 2009

Quarta-Feira de Cinzas
























A Fênix faxina fundo,

a famigerada falência do Ego.
Fulminante, flagra falcatruas
de falsos corações e falsas mentes,
que sempre mentem !

Não nego, não me apego,
Mas não reclamo quando ardo em chamas.

Carregar a consciência de uma época
Não é tarefa para o ser humano.

Não sou Prometeu Acorrentado.
Se depender de mim,
O meu fígado não pode ficar na reta
para que os homens saiam da escuridão.

E o pior, é que a Terça-Feira Gorda
não devorou meu fígado.
A Esfinge do Samba Carioca é mais exigente.

No Terreirão do Samba.
Espetou meu coração
Colocou-o na brasa
e o vendeu mais barato
que um churrasquinho de carne de gato

Ainda bem que sou Macaco !
Vou mudar de galho
Mas enquanto arde a brasa
Não posso renascer das cinzas !

Ricardo Muniz de Ruiz - Poeta Mameluco Brasileiro

Cosme Velho, 25 de fevereiro de 2009
quarta-feira de cinzas - 12:12 horas