terça-feira, outubro 31, 2006

T. S. Eliot The Shadows Of Rainbow

A Busca de Suzart


(Ao Ricardo Rangel e ao Kok Nam)

1. The formal word exact without vulgarity
A história agora é o Iraque, já que nós, bronzeos,
e a história somos o molde. Na voz do sangue,
há sempre um negro ou cigano de violão azul.

Há um tempo para as estrelas dormirem
e outro para fazerem amor; quer dizer,
copular de olhos acesos ou já mortiços.

E inútil esbracejar ante os verdugos.
Diriam: espera assim, vergastado, pois virá
a escuridão. Teremos luz, o vinho, a dança, a orgia,
porque, sabes, os cavalos também se abatem. E as flores!
(Não é cada poema o caixão, o epitáfio, o ilegível mármore?)

2. Temos, há muito, sibilas, na boca e na garganta índicas.
Angoche ou Zavala são só luzes fixas pela "Nikon"?!
Temos a perturbação no vórtice das aves, na plena
rotação de iluminações luarentas; e há veios raivosos
de conversas cerca das gazelas e da pose eterna das garças.
Há rostos no oculto e este cheira a crime, a incursão
de uma balada de tiros, com odor perfeito, único,
do espumoso aberto às nossas 24 horas. Mas é do lar
da amizade ou da submissão? As praias e as reservas
devoram turistas e seus iates, aviões a jacto (ou, poeta,
da jactância?), pela agitação de tanto cascalho marinho.

And do not think of the fruit of action

3. É inútil esbracejar, se hispar a artéria do jazz
de um encenado morremorrer na Julius Nyerere
ou nos pês-agás da Coop. Ei-lo, o grito de Átila!
E ele tem alvos; não cessa o que, ímpio, enlameia
esta tecla (secas, fome; dilúvios, miséria!) de Dali,
de três metros suficientes para um poeta dizê-lo:
"Temos a cama franca, a mulher, útil paixão!"

Into another intensity; o fim é sempre evolução.


Heliodoro Baptista - poeta luso-moçambicano

quinta-feira, outubro 19, 2006

Discurso no Parlamento

Actual Presidente da República de Angola



Um dia, encho-me de coragem
E vou mesmo discursar no parlamento
Confesso que fiz juramento
De ir a pé até lá
De entrar naquela sala,
Para discursar a minha mensagem

Um dia, apareço nas câmaras da televisão
Verdade mesmo, não é ilusão
Apareço com o meu rosto maltratado
Com o meu rosto de drogado
Para pedir um ponto de ordem
Aos senhores deputados,
Eu mesmo que vivo do outro lado da margem

Já sei que vão olhar com indignação
Para os meus pés descalços
Para os meus calções rotos
E para os meus magritos braços
Já consigo imaginar os vosso rostos
De indignação e estupefacção

Mas mesmo assim eu vou mesmo discursar
Em plena assembleia nacional
Assim mesmo, com este meu visual
De menino de rua votado ao abandono
De menino de rua cão sem dono
Eu vou à assembleia nacional falar

Assim mesmo, sem convite
E sem ser chamado
Eu, que não sei falar português de escola
Vou entrar naquela sala
Para falar com os senhores deputados
Eu vou lá sem convite, acredite!

E antes de me porem andar à paulada
Antes de me mandarem calar à porrada
Vou rasgar o meu peito
Para vocês escutarem o grito
De tanto sofrimento vivido
De tanto sofrimento bebido

E enquanto estiver a ser arrastado
Para fora da assembleia nacional
Eu, menino de rua cão sem dono e drogado
Eu, menino de rua marginal
Ainda terei coragem
Ainda serei capaz
De trovejar a minha mensagem:
POR FAVOR, PÃO, TECTO E PAZ!

Não levem a mal
Mas eu vou mesmo discursar em plena assembleia nacional!


Décio Bettencourt Mateus – poeta angolano

quarta-feira, outubro 18, 2006

Poema da Infância Distante

menina africana

A Rui Guerra


Quando eu nasci na grande casa à beira-mar,
era meio-dia e o sol brilhava sobre o Índico.
Gaivotas pairavam, brancas, doidas de azul.
Os barcos dos pescadores indianos não tinham regressado ainda
arrastando as redes pejadas.
Na ponte, os gritos dos negros dos botes
chamando as mamanas amolecidas de calor,
de trouxas à cabeça e garotos ranhosos às costas
soavam com um ar longínquo,
longínquo e suspenso na neblina do silêncio.
E nos degraus escaldantes,
mendigo Mufasini dormitava, rodeado de moscas.

Quando eu nasci...
– Eu sei que o ar estava calmo, repousado (disseram-me)
e o sol brilhava sobre o mar.
No meio desta calma fui lançada ao mundo,
já com meu estigma.
E chorei e gritei – nem sei porquê.
Ah, mas pela vida fora,
minhas lágrimas secaram ao lume da revolta.
E o Sol nunca mais brilhou como nos dias primeiros
da minha existência,
embora o cenário brilhante e marítimo da minha infância,
constantemente calmo como um pântano,
tenha sido quem guiou meus passos adolescentes,
- meu estigma também.
Mais, mais ainda: meus heterogéneos companheiros
de infância.

Meus companheiros de pescarias
por debaixo da ponte,
com anzol de alfinete e linha de guita,
meus amigos esfarrapados de ventres redondos como cabaças,
companheiros de brincadeiras e correrias
pelos matos e praias da Catembe
unidos todos na maravilhosa descoberta de um ninho de tutas,
na construção de uma armadilha com nembo,
na caça aos gala-galas e beija-flores,
nas perseguições aos xitambelas sob um sol quente de Verão...
– Figuras inesquecíveis da minha infância arrapazada,
solta e feliz:
meninos negros e mulatos, brancos e indianos,
filhos da mainata, do padeiro,
do negro do bote, do carpinteiro,
vindos da miséria do Guachene
ou das casas de madeira dos pescadores,
Meninos mimados do posto,
meninos frescalhotes dos guardas-fiscais da Esquadrilha
– irmanados todos na aventura sempre nova
dos assaltos aos cajueiros das machambas,
no segredo das maçalas mais doces,
companheiros na inquieta sensação do mistério da “Ilha dos navios perdidos”
– onde nenhum brado fica sem eco.

Ah, meus companheiros acocorados na roda maravilhada
e boquiaberta de “Karingana wa karingana”
das histórias da cocuana do Maputo,
em crepúsculos negros e terríveis de tempestades
(o vento uivando no telhado de zinco,
o mar ameaçando derrubar as escadas de madeira da varanda
e casuarinas, gemendo, gemendo,
oh inconsolavelmente gemendo,
acordando medos estranhos, inexplicáveis
das nossas almas cheias de xituculumucumbas desdentadas
e reis Massingas virados jibóias...)
Ah, meus companheiros me semearam esta insatisfação
dia a dia mais insatisfeita.

Eles me encheram a infância do sol que brilhou
no dia em que nasci.
Com a sua camaradagem luminosa, impensada,
sua alegria radiante,
seu entusiasmo explosivo diante
de qualquer papagaio de papel feito asa
no céu de um azul tecnicolor,
sua lealdade sem código, sempre pronta,
– eles encheram minha infância arrapazada
de felicidade e aventuras inesquecíveis.

Se hoje o sol não brilha como do dia
em que nasci, na grande casa,
à beira do Índico,
não me deixo adormecer na escuridão.
Meus companheiros me são seguros guias
na minha rota através da vida.
Eles me provaram que “fraternidade” não é mera palavra bonita
escrita a negro no dicionário da estante:
ensinaram-me que “fraternidade” é um sentimento belo, e possível,
mesmo quando as epidermes e a paisagem circundante
são tão diferentes.

Por isso eu CREIO que um dia
o sol voltará a brilhar, calmo, sobre o Índico.
Gaivotas pairarão, brancas, doidas de azul
e os pescadores voltarão cantando,
navegando sobre a tarde ténue.

E este veneno de lua que a dor me injectou nas veias
em noite de tambor e batuque
deixará para sempre de me inquietar.

Um dia,
o sol iluminará a vida.
E será como uma nova infância raiando para todos.


Noémia de Sousa – poeta moçambicana
29 de Abril de 1950

domingo, outubro 15, 2006

Classificado Literário

Classificados


Precisa-se de moça
De fino trato.

Para momento agradável
De elaboração
estético-poética.

De mão leves
e idéias firmes.

Que saiba digitar e
passar os dedos
Sem machucar as palavras.

Que tenha habilidade
Para mobilizar a platéia.

Que saiba utilizar
Meios seguros
para finais bombásticos.

Que não seja escandalosa
Mas entenda de prosa.

Que saiba manter a neutralidade:
Entre: maiúsculas e minúsculas;
orações subordinadas e coordenadas;
sujeito e predicado.

Que tenha objetivos diretos
Mas nunca dispense o objeto indireto.

Que saiba intrigar
Sem criar mutreta.

Que construa tramas
Sem destruir corações.

Que pratique boas ações
Principalmente as em alta.

Não precisa estourar o pregão
Mas que saiba evitar a queda da bolsa.
Pois boa moça
Não vacila com bolsa.

Que saiba dar
Tratos a bola,
ou então
Bolar contratos.

Armar bom contrato
É um raro exemplo
de fino trato.

Que seja por extensão
Contra os maus tratos.

Que saiba fazer
A ligação entre a defesa e o ataque.

Que não pratique faltas violentas
Nem precise jogar na zaga.

Ah!!!
E muito importante
Não seja zangada !

Que tenha alegria
E não entre em fria.

Que saiba dar passes
Na Zona do Agrião.

Se quiser aproveitar
Pode fazer uma boa salada
orgânica, sem agro-tóxicos.

De preferência, salada-de-frutas
Com as frutas da estação
Aproveitando que no Rio
É sempre verão.

Oferecemos:
Trama complexa
Enredo Vigoroso
Episódios Completos,
Sem finais incertos.
Suspense Garantido
Vaga no elenco
Direito autoral
e
Roteiro original!


Ricardo Muniz de Ruiz – poeta brasileiro
"Cosme Velho, 10 de outubro de 2006."

sexta-feira, outubro 13, 2006

A Rectidão da Água; O Crescimento

A Rectidão da Água


a rectidão da água; o crescimento
das avenidas, ao anoitecer, sob a nua
vibração dos faróis;

o laço, mesmo, das portas só
entreabertas, onde a luz
silenciosa se demora;

são memórias, decerto, de um anterior
esquecimento, uma inocente
fadiga das coisas,

como os corpos calados, abandonados
na véspera da guerra, o teu
jeito para

o desalinho branco das palavras,
altas as
asas de nuvens no clarão do céu

em vão rigor abrindo
o destinado enigma: assim
desconhecer-te cada dia mais

ausente de recados e colheitas,
em assustado bosque, em sombra
clareira,

ao risco dos rios frívolos descendo
seixos polidos, desinscritos,
imóveis movendo

a luz do dia;
a margem recortada, aonde vivem
ausentes e seguros, os luminosos

animais do inverno;
assim são na verdade os muros claros;
assim respira o tempo, a terra intensa.


António Franco Alexandre – poeta português
Em "A Pequena Face"

quinta-feira, outubro 12, 2006

A Billie Holiday, Cantora

Cantora  Billie Holiday


Era de noite e no quarto aprisionado em escuridão
apenas o luar entrara, sorrateiramente,
e fora derramar-se no chão.
Solidão. Solidão. Solidão.

E então,
tua voz, minha irmã americana,
veio do ar, do nada nascida da própria escuridão...
Estranha, profunda, quente,
vazada em solidão.

E começava assim a canção:
“Into each heart some rain must fall...”
Começava assim
e era só melancolia
do princípio ao fim,
como se teus dias fossem sem sol
e a tua alma aí, sem alegria...

Tua voz irmã, no seu trágico sentimentalismo,
descendo e subindo,
chorando para logo, ainda trémula, começar rindo,
cantando no teu arrastado inglês crioulo
esses singulares “blues”, dum fatalismo
rácico que faz doer
tua voz, não sei porque estranha magia,
arrastou para longe a minha solidão...

No quarto às escuras, eu já não estava só!
Com a tua voz, irmã americana, veio
todo o meu povo escravizado sem dó
por esse mundo fora, vivendo no medo, no receio
de tudo e de todos...
O meu povo ajudando a erguer impérios
e a ser excluído na vitória...
A viver, segregado, uma vida inglória,
de proscrito, de criminoso...

O meu povo transportando para a música, para a poesia,
os seus complexos, a sua tristeza inata, a sua insatisfação...

Billie Holiday, minha irmã americana,
continua cantando sempre, no teu jeito magoado
os “blues” eternos do nosso povo desgraçado...
Continua cantando, cantando, sempre cantando,
até que a humanidade egoísta ouça em ti a nossa voz,

e se volte enfim para nós,
mas com olhos de fraternidade e compreensão!


Noémia de Sousa - poetisa Moçambicana

terça-feira, outubro 10, 2006

Menino de Bairro de Zinco

Crianças de Moçambique


Menino de bairro de zinco
Amigo da aldeia de palha
Sobe o cajueiro menino
Que a tua mãe não ralha
Menino de bairro de zinco

Com bolas de trapo e cordel
Carrinhos de arame e cana
Baloiços na mangeira
E as construções de lama
Menino de bairro de zinco

Menino filho da guerra
Nos jardins de canaviais
Corre, corre menino
Que o mato nunca é demais
Menino de bairro de zinco

Trazes um sorriso de Havana
E os olhos negros de Bombaim
Um poema de Lisboa
O meu Ìndico é assim

De dia o sol te transpira
À noite a lua te bronzeia
Corre corre menino
Que na aldeia já há fogueira
Menino de bairro de zinco

Há fogueira e batucada
P'ra teu corpo temperar
Depois, adormeces na esteira
Até amanhã o sol raiar
Menino de bairro de zinco


Gonzaga Coutinho – poeta moçambicano

quarta-feira, outubro 04, 2006

Ndumbu

Pintura de Ivone Ralha
Pintura de Ivone Ralha


O estranho
Em cima de mim
Que me penetra brutal e sem carinho
É um desconhecido
E tem o meu consentimento contrariado,
Quando chegará ao fim?

O homem
Que faz uso do meu corpo
Transformando-o em farrapo
E em trapo também
Nunca vi antes
Só agora nestes instantes

O estranho bêbedo
De mau hálito
Que comprime o seu peito
Contra os meus treze anos
E afaga os meus seios pequenos
É um desconhecido, o safado

O estranho sujo
No interior do meu sexo
Que depois sai molhado e frouxo
Eu não vejo
Pois penso na família desaparecida
E na casa destruída

O estranho que me enoja
Quando me beija
Não possui a minha alma
Nem alcança o meu íntimo,
Encontra-me distante
E do meu corpo ausente

O sujeito (estranho)
Que depois me entrega o dinheiro
De que tanto necessito (e muito me envergonho)
Nunca foi meu parceiro
Nunca esteve comigo
E tão pouco alguma vez foi meu amigo,
É um desconhecido
E logo-logo será esquecido


Ndumbu – mulher de rua, prostituta


Décio Bettencourt Mateus – poeta angolano

domingo, outubro 01, 2006

Os Monangambas

Suzart - Afrika

Pintura de Suzart


Rooonca-os o camião
no jingololo da rua
Eles vão negros
e levam o sol no peito

Monanbambééé...! Monangambééé...!

Passam esquinas de cimento
passam largas avenidas
E ferem-se berros e silvos
Golpeia neles o vento

Monangambééé...! Monangambééé...!

Levam nos rostos firmeza
jimbamba de sonho e terra
Vão de frente para os gritos
Vão-lhes sentindo a dureza

Monangambééé...! Monangambééé...!

Deixam rastos nas estradas
(já é horizonte o seu manto)
pistas reencontradas
e punhos cerrados de espanto

Monangambééé...! Monangambééé...!

Passam os que servem a vida
com a força do seu suor
Ficam nas ruas os desígnios
que dos seus passos nasceram

Monangambééé...! Monangambééé...!


Arnaldo Santos - poeta angolano

O Quinto Império

Padrão dos Descobrimentos em Belém


Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!

Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raíz --
Ter por vida sepultura.

Eras sobre eras se somen
No tempo que em eras vem.
Ser descontente é ser homem.
Que as forças cegas se domem
Pela visão que a alma tem!

E assim, passados os quatro
Tempos do ser que sonhou,
A terra será teatro
Do dia claro, que no atro
Da erma noite começou.

Grécia, Roma, Cristandade,
Europa -- os quatro se vão
Para onde vai toda idade.
Quem vem viver a verdade
Que morreu D. Sebastião?

Fernando Pessoa - poeta português
Na "mensagem"