sábado, maio 05, 2007

Dispersão

Labirinto

Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.

Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...

Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.

(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:

Porque um domingo é família,
É bem-estar, é singeleza,
E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem família).

O pobre moço das ânsias...
Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que te abismaste nas ânsias.

A grande ave doirada
Bateu asas para os céus,
Mas fechou-as saciada
Ao ver que ganhava os céus.

Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traiu a si mesmo.

Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que projecto:
Se me olho a um espelho, erro -
Não me acho no que projecto.

Regresso dentro de mim
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim.

Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
A morte da minha alma.

Saudosamente recordo
Uma gentil companheira
Que na minha vida inteira
Eu nunca vi... mas recordo.

A sua boca doirada
E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido
Que vem na tarde doirada.

(As minhas grandes saudades
São do que nunca enlacei.
Ai, como eu tenho saudades
Dos sonhos que não sonhei!...)

E sinto que a minha morte -
Minha dispersão total -
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.

Vejo o meu último dia
Pintado em rolos de fumo,
E todo azul-de-agonia
Em sombra e além me sumo.

Ternura feita saudade,
Eu beijo as minhas mãos brancas...
Sou amor e piedade
Em face dessas mãos brancas...

Tristes mãos longas e lindas
Que eram feitas p'ra se dar...
Ninguém mas quis apertar...
Tristes mãos longas e lindas...

Eu tenho pena de mim,
Pobre menino ideal...
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?... Ai de mim!...

Desceu-me n'alma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.

Álcool dum sono outonal
Me penetrou vagamente
A difundir-me dormente
Em uma bruma outonal.

Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço...
A hora foge vivida
Eu sigo-a, mas permaneço...

.......................................
Castelos desmantelados,
Leões alados sem juba...
.......................................


Mário de Sá Carneiro - poeta português
(Paris, Maio de 1913)

16 comentários:

Menina do Rio disse...

Perdi-me dentro de mim a tua procura, pois pra mim é sempre ontem; já que o hoje é só saudades...

beijinhos

Mikas disse...

Todos os dias nos perdemos e nos encontramos um pouco...

Rafaela disse...

amor é uma luz que não deixa escurecer a vida. Camilo Castelo Branco
Uma excelente semana. Bjosss com carinho.

Anónimo disse...

Essa poesia é linda.
Parabéns pela escolha.

Phiwuipa disse...

Às vezes estamos tão certos do caminho a seguir, mas também tão perdidos...
Às vezes só se vê mesmo o ontem porque quando deveríamos aproveitar o hoje, ainda estamos a pensar no que "perdemos" no tal ontem...
Às vezes... Acordamos para voltar a fechar os olhos para o mundo!

*Beijinhos*

Aline Ribeiro disse...

Se nos encontrarmos dpois, tudo bem!
Bjo moço

Paula Negrão disse...

Deixemos nos perder mesmo..é bom!
=]

beeeijos!

delusions disse...

"Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
A morte da minha alma."

ás vezes é assim que nos perdemos. vemos e percebemos que somos perdidos em nós.
gosto muito de Sá-Carneiro, uma escolha muito bonita.

Luís Galego disse...

grande mário sá carneiro....grande momento.

Vera Carvalho disse...

Nada mais prioritário que o conhecimento de nós próprios e a confiança em nós mesmos!
Só assim as perdas e os desgostos não causarão tamanha dor.
Um abraço para ti.

Paula Negrão disse...

Cadê você?
=/

beijos

Chama Violeta disse...

Dizei muitas vezes ao dia:

“Eu Sou uma coluna de Fogo Violeta, um foco de luz da energia cósmica, que consome tudo o que é negativo”.

Beijos de luz e fica bem...

un dress disse...

há muito que não lia mário de s. carneiro...poeta que tanto li em tempos.

foi um prazer vir aqui...*

Anónimo disse...

O bom de nos perdermos, é que quando nos reecontramos descobrimos que somos capazes de renascer...

Beijos e fica bem

O que sou: disse...

Olá! encontrei seu blog em um de uma amiga e resolvi dar uma olhadinha. Gostei e adicioneí o seu também.
Parabéns pelo seu blog!
Ótima semana!
Elisangela

Anónimo disse...

"Fiquei pelos cantos na saudade
Há dez anos tenho a mesma idade
Já nem mais conheço a humanindade
Ou a verdade...
A vida sempre passa sorrateira
e eu no banco da praça de bobeira
o tempo esqueceu uma passageira...
Que sujeira..."

Pra tudos que em algum momento se perderam de seu próprio tempo e em seu próprio labirinto!!!

Cristina Dracco