domingo, junho 11, 2006

Ébano


Ébano
a cor escura de um mundo
povoado de deuses
de muitas danças e êxtases

de rituais antigos
de magia e mistério
de lindas mulheres
de homens imensos e pequenos

de música sincopada
de lutas entre tribos
de povos muito antigos
das profundezas da história

de rainhas suntuosas
de fantásticas pirâmides

de muita gente roubada
das suas terras divinas
onde brilha o eterno sol

algemada e banida
para uma terra longínqua
e aí escravizada
por tempos que não têm fim

Abílio Terra Júnior – poeta brasileiro

sexta-feira, junho 09, 2006

O Deus de Cada Homem


Quando digo “meu Deus”,
afirmo a propriedade.
Há mil deuses pessoais
em nichos da cidade.

Quando digo “meu Deus”,
crio cumplicidade.
Mais fraco, sou mais forte
do que a desirmandade.

Quando digo “meu Deus”,
grito minha orfandade.
O rei que me ofereço
rouba-me a liberdade.

Quando digo “meu Deus”,
choro minha ansiedade.
Não sei que fazer dele
na microeternidade.

Carlos Drummond de Andrade – poeta brasileiro

O Minuto Que Vem


Há medo
leio-o
nos rostos dos homens
medo do minuto que vem (?)

Que grande desgraça traz
o minuto que vem?

Leio medo
nos rostos dos homens,
rostos que não falam,
mas têm nessa voz muda
o latejar do enigma que emprenha o minuto que vem!


Criemos uma canção, homens,
criemos uma canção de luta e de amor
que será de triunfo
no minuto que vem,
sobre o medo e a resignação!

Cantemos sobre o medo
do minuto que vem!

Juvenal Bucuane – poeta moçambicano

Pus O Meu Sonho Num Navio


Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
– depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.

Cecília Meireles – poetisa portuguesa

Não digas nada! Que hás-me de dizer?


NÃO DIGAS NADA! Que hás-me de dizer?
Que a vida é inútil, que o prazer é falso?
Di-lo de cada dia a cadafalso
Ao que ali um dia vai morrer.
Mais vale não querer.

Sim, não querer, porque querer é um ponto,
Ponto no horizonte de onde estamos,
E que nunca atingimos nem achamos.
Presos locais da ida e do horizonte
Sem asas e sem ponte.

Não digas nada, que dizer é nada!
Que importa a vida, e o que se faz na vida?
É tudo uma ignorância diluída.
Tudo é esperar à beira de uma estrada
A vinda sempre adiada.

Outros são os caminhos e as razões.
Outra a vontade que nos fará seus.
Outros os montes e os solenes céus.


Fernando Pessoa – poeta português

Poema da Volta

Pintura de Walter de Sousa

Cá estou
em carne e osso
corpo e alma
verso e prosa.
Mar e lagoa
montanha e nuvem
praia e sol
cariocas e estrangeiras
Pessoa e Cartola
bikinis e pivetes
topless e arrastão.

Passado vadio
futuro mal pago
presente contente
Tente...
Pecado safado...
comunhão preventiva,
absolvição garantida.
Extrema-unção à prestação
devo não nego,
não pago,
não compro,
não assino,
e quero o recibo.
O mundo é logo ali
O Brasil é que tá no
Cafundó do Judas.
Fronteira aberta!
Como o futuro de nossas crianças
que jamais serão adultas,
mas levarão muitos adultos antes de partir.
Fronteiras abertas
como as pernas das adolescentes nos bordéis
das adoções fraudulentas para extirpação de órgãos
das árvores decepadas na Amazônia
dos rios contaminados de alumínio
da população dormindo nas ruas
ocupando o espaço do lixo.
As escolas encalhadas
e as idéias abandonadas.
Os hospitais cheios
nas filas do lado de fora.

A esperança é recorrente,
pois deus é brasileiro
o diabo é que é estrangeiro.
Mas a direita é maneta
e a esquerda é perneta.
O centro é capado,
e faz tudo por trás.
Todos mamam na teta.
Caros dirigentes:
Competentes punhetas!
No verão vê-se
que a vida é curta
mas o dia é comprido
Ricardo Muniz de Ruiz – poeta brasileiro

Canção dos Rapazes da Ilha


Eu sei que fico.
Mas o meu sonho irá
Levado pelo vento, pelas nuvens, pelas asas.

Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá ...

Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá
Nos frutos, nos colares
E nas fotografias da terra,
Comprados por turistas estrangeiros
Felizes e sorridentes.
Eu sei que fico mas o meu sonho irá ...

Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá
Metido na garrafa bem rolhada
Que um dia hei de atirar ao mar.

Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá ...

Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá
Nos veleiros que desenho na parede.

Aguinaldo Fonseca – poeta cabo-verdiano

Sentimento Súbito

Pintura de Malangatana Ngwenya Valente


A Cícero Belmar

Porque você nada sabe da insônia
não venha assim desavisado com esse universo de frases protocolares
e toda uma higiene pasteurizada de ternura
cuidado e não se aproxime demais
existe uma parte de mim onde ninguém chegou ainda
e o desespero sempre faz com que a gente precise acreditar em tudo
estou ficando cada vez mais com medo desse sentimento súbito

a água que lavou as letras da biblioteca
é um sinal de que o amor e a palavra exigem renovação
que tanto estudo não resolve o desamparo
e que continua desabitada a casa que sou

finjo-me autobiográfica e renasço como personagem
espasmo de eletrochoque eu sirvo o meu senhor
ducha de eletricidade eu sirvo o meu senhor
e basta o seu tom de voz ser um pouco menos terno
que eu já sinto dor

como quem escolhe uma salada de rúcula
em um cardápio de veludo escuro
você está sentado numa poltrona de aço
que já começa a ser engolida
pelo mar vulcânico da minha loucura

não sei porque tudo vinha tão vagarosamente de modo calmo
e de repente foi aquele estalo aquele sobressalto
e você não entendeu nos intervalos de linguagem
o meu jeito pelo avesso de cantar um blue

você não entendeu nada
você não percebeu que eu sou um fósforo apagado
esquecido na fuligem com memória do passado
que a vida cai pesadamente em meu cabelo azulado
e para a tela grande perder o colorido basta uma pilha se gastar

por isso eu chego a ti numa bolha de sabão gigante
soprada no canudo de mamoeiro do quintal da infância
onde aprendi a noite o sol os cristais coloridos e as músicas ciganas
daí que basta você me tocar e eu retorno à vida
quebra-se o encanto e o feitiço
e saio para a realidade carne que se desprende das páginas do livro

escrevo sobre a vida como um exorcismo
não tenho remorso do que vivo
o meu poema é o sinônimo da minha pele exposta
na implosão do muro de Berlim dos sentimentos físicos

sinal vermelho
rostos vazios
caminhei coberta de sargaços na avenida
como um insignificante alfinete atraído por um imã
e perdi o sono perambulando nos telhados
á procura das palavras mais precisas
quando finalmente descobri que o que importa mesmo sempre está implícito

e agora
eu só quero que você ouça minha voz subterrânea
ecoando muito além de toda superfície
mesmo que em mim nada esteja a salvo
quero que observe com perplexidade como eu tenho estilo
e a melancolia dos meus olhos claros
atravessa nervosamente o cosmos como um neutrino
argila submarina de abalos sísmicos na manhã de uma rua vazia de domingo

hoje falta-me companhia para sair e beber um vinho
nada acontece e eu não sei como faço para manter-me viva
nada acontece e eu fico inerte sem regresso nem partida
devo mudar uma vida que já não me serve
mas ando muito cansada de ser sempre eu a tomar todas as iniciativas

você não entendeu nada
e eu estava dizendo apenas na verdade
que subitamente eu fui ficando perturbada
você me lê somente para encontrar suas palavras
mas eu venho de uma raça de saltimbancos e acrobatas
e brilham relâmpagos da tempestade nos meus gestos delicados

o meu corpo flutua como sílabas de imagens congeladas
e nessa opressão desarticulada decido desesperadamente ficar calada
mas não esqueço o convite para ver as estrelas num deserto do Marrocos
nem a minha estranha fuga automática daquele mundo cor-de-rosa entre penhascos
para voltar aqui e ficar sempre à espera do destino e do a acaso
sentinela do nada

e a vida passa como as nuvens na janela
da próxima vez eu vou ter mais cuidado
porque das outras sei que estraguei tudo

só por ter medo de encarar a realidade

eu vou telefonar
depois a gente se fala
agora eu não posso acordar
entenda que eu carrego a saudade das aves migratórias
que sobrevoam os alpinistas do círculo polar

porque você nada sabe da insônia
e existe uma parte de mim onde ninguém chegou ainda
e o desespero sempre faz com que a gente precise acreditar e em tudo
estou ficando cada vez mais com medo desse sentimento súbito

Lucila Nogueira – poetisa brasileira

Quem Foi à Pátria Que Me Pariu


Uma prostituta chamada Brasil se esqueceu de tomar a pílula e a barriga cresceu
um bebê não estava nos planos dessa pobre meretriz de dezassete anos
um aborto era uma fortuna e ela sem dinheiro
teve de tentar fazer um aborto caseiro
tomou remédio, tomou cachaça, tomou purgante
mas a gravidez era cada vez mais flagrante
aquele filho era pior que uma lombriga
ela pediu prum mendigo esmurrar sua barriga
e a cada chute que levava o moleque revidava lá de dentro
aprendeu a ser um feto violento
um feto forte, escapou da morte
não se sabe se foi muito azar ou muita sorte
mas nove meses depois foi encontrado, com fome e com frio, abandonado num terreno baldio.

Pátria que me pariu!
Quem foi a pátria que me pariu?!
Pátria que me pariu!
Quem foi a pátria que me pariu?!
Pátria que me pariu!
Quem foi a pátria que me pariu?!
Pátria que me pariu!
Quem foi a pátria que me pariu?!

A criança é a cara dos pais mas não tem pai nem mãe
então qual é a cara criança?
A cara do perdão ou da vingança?
Será a cara do desespero ou da esperança?
Num futuro melhor, um emprego, um lar...
Sinal vermelho, não dá tempo pra sonhar
vendendo bala, chiclete...
"num fecha o vidro que eu num sou pivete
eu num vou virar ladrão se você me der um leite, um pão,
um video-game e uma televisão
uma chuteira e uma camisa do mengão
pra eu jogar na seleção, que nem o ronaldinho
vou pra copa. Vou pra europa...
" – coitadinho! Acorda, Moleque!
Cê num tem futuro! Seu time não tem nada a perder
e o jogo é duro!
Você num tem defesa, então ataca!
Pra num sair de maca
chega de bancar o babaca
"eu num agüento mais dar murro em ponta de faca
e tudo o que eu tenho é uma faca na mão
agora eu quero o queijo.
Cadê? Tô cansado de apanhar, ta na hora de bater!"

Pátria que me pariu!
quem foi a pátria que me pariu?!
pátria que me pariu!
quem foi a pátria que me pariu?!
pátria que me pariu!
quem foi a pátria que me pariu?!
pátria que me pariu!
quem foi a pátria que me pariu?!

Mostra a tua cara moleque! Devia tá na escola
mas tá cheirando cola, fumando um beck, vendendo brizola e crack
nunca joga bola mas tá sempre no ataque
pistola na mão, moleque sangue-bom
é melhor correr porque lá vem o camburão
é matar ou morrer!
São quatro contra um (– eu me rendo!!)
Bum! Clá – clá! Bum! Bum! Bum!
Boi, boi, boi da cara preta
pega essa criança com um tiro de escopeta
calibre doze, na cara do brasil
idade: catorze estado civil: morto
demorou, mas a sua pátria mãe gentil conseguiu realizar o aborto.

Pátria que me pariu!
Quem foi a pátria que me pariu?!
Pátria que me pariu!
Quem foi a pátria que me pariu?!
Pátria que me pariu!
Quem foi a pátria que me pariu?!
Pátria que me pariu!
Quem foi a pátria que me pariu?!
Gabriel o Pensador - poeta e rapper brasileiro

sábado, junho 03, 2006

Aldeia Queimada


Mas
nas noites
desparasitadas de estrelas
é que as hienas
actuam.

É
de cinzas
o vestígio das palhotas.

José Craveirinha – poeta moçambicano

Em "Babalaze das Hienas", Maputo 1997

sexta-feira, junho 02, 2006

Ao Bater da Chuva


A porta fechada é uma obsessão.
As vozes caladas em torno de nós,
as pausas alongadas em silêncios de uma angústia
nova,
são a descontinuidade do tempo interrompido
dentro da casa que arrombaram ontem,
no coração da aldeia do Mazozo.
A chuva cai em bátegas doces, a chuva bate o capim
molhado,
e soa...
A humanidade é fria.

As mulheres já choraram tudo

– A Mãe Gonga comandou o coro.
Esvaem-se agora em surdina muda,
que agudiza o bater da chuva.
Os homens dizem de quando em quando
um nome obstinado.

Chamava-se Infeliz
aquele rapaz
que levaram ontem
do coração da aldeia.

A chuva matraqueia ainda e sempre
na porta fechada como uma obsessão.
Como ela nos lembra o som odiado
que dia após dia
nos sobressalta!
Como ela recorda o som da metralha,
que dia após dia
desce o morro da Calomboloca
e bate naquela porta fechada,
obcecada de protecção!

A gente conhece o som da metralha
quando ela vem no fim do dia.
Quando ela vem, silencia a aldeia,
então, em sobressalto, o povo diz:
– Foram fuzilados...

E ninguém sabe do Infeliz,
aquele rapaz que levaram ontem...

Henrique Abranches – poeta angolano

quinta-feira, junho 01, 2006

Changara


Engoliram luas as crianças de Changara
Os olhos delas são pássaros tristes sem voo
que no desespero da fome acumulada
comem estrelas como se fossem grãos de milho.
Quando as sementes secaram nos campos
e o sangue secou nas veias dos rios
e a seiva secou nas veias das plantas
e o sol secou os celeiros da aldeia,
serpentes famintas silvam em volta
do peito cindido. Uma toupeira chora
ao frémito dos imbondeiros. Grave,
arde sobre a erva amarga a dor:
Das luas engolidas pelas crianças
quantas tardará a ecoar nos jornais?

Julius Kazembe – poeta moçambicano

Em "Vozes poéticas da lusofonia", Sintra, 1999

A Pedra Filosofal


Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpetuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
para-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos duma criança.

António Gedeão – poeta português