quarta-feira, fevereiro 28, 2007

Canção Grata

Mulher Forte

Por tudo o que me deste
inquietação cuidado
um pouco de ternura
é certo mas tão pouca
Noites de insónia
Pelas ruas como louca
Obrigada, obrigada

Por aquela tão doce
e tão breve ilusão
Embora nunca mais
Depois de que a vi desfeita
Eu volte a ser quem fui
Sem ironia aceita
A minha gratidão

Que bem que me faz agora
o mal que me fizeste
Mais forte e mais serena
E livre e descuidada
Sem ironia amor obrigada
Obrigada por tudo o que me deste

Por aquela tão doce
e tão breve ilusão
Embora nunca mais
Depois de que a vi desfeita
Eu volte a ser quem fui
Sem ironia aceita
A minha gratidão

Florbela Espanca - poetisa portuguesa

terça-feira, fevereiro 27, 2007

Eu, Que Sou Feio...

Pintura de Ivone Ralha

Eu, que sou feio...

Eu, que sou feio, sólido, leal,
A ti, que és bela, frágil, assustada,
Quero estimar-te, sempre, recatada
Numa existência honesta, de cristal.

Sentado à mesa dum café devasso.
Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura.
Nesta Babel tão velha e corruptora,
Tive tenções de oferecer-te o braço.

E, quando socorreste um miserável,
Eu que bebia cálices de absinto,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom, saudável.

«Ela aí vem!» disse eu para os demais;
E pus-me a olhar, vexado e suspirando,
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na frescura dos linhos matinais.

Via-te pela porta envidraçada;
E invejava, - talvez não o suspeites!-
Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada.

Ia passando, a quatro, o patriarca.
Triste eu saí. Doía-me a cabeça.
Uma turba ruidosa, negra, espessa,
Voltava das exéquias dum monarca.

Adorável! Tu muito natural,
Seguias a pensar no teu bordado;
Avultava, num largo arborizado,
Uma estátua de rei num pedestal.

Cesário Verde - poeta português

sábado, fevereiro 24, 2007

Grandes Obras

País da Corrupção

No país da democracia
uma enorme obra tornou-se
absolutamente necessária
para que a hipocrisia
junto com a inveja e a bobagem
tomassem posse do estado
e mal fizessem às pessoas do bem Todo Mundo
grão-mestre daquela nação
convocou Alguém para executar
a inadiável tarefa

Alguém
embolsou 40 % da verba
e ofereceu o restante para que
Qualquer Um
tocasse a obra à sua maneira Qualquer Um
cobrou 30% de comissão
e dividiu o que sobrou com
Alguém
que ofereceu-se para suar a camisa
e tocar a obra até o fim no fim: deu tudo errado
e Todo Mundo culpou Alguém
porque Ninguém fez
o que Qualquer Um
poderia ter feito
mas não fez ...mesmo assim
Ninguém foi preso
pelo grande fracasso.

Tavinho Paes - poeta brasileiro
(Publicado no panfleto O KÚMPLICE DO TARADO - 1979)

Poema da Amante

Amantes

Eu te amo
Antes e depois de todos os acontecimentos
Na profunda imensidade do vazio
E a cada lágrima dos meus pensamentos.


Eu te amo
Em todos os ventos que cantam,
Em todas as sombras que choram,
Na extensão infinita do tempo
Até à região onde os silêncios moram.


Eu te amo
Em todas as transformações da vida,
Em todos os caminhos do medo,
Na angústia da vontade perdida
E na dor que se veste em segredo.


Eu te amo
Em tudo que estás presente,
No olhar dos astros que te alcançam
Em tudo que ainda estás ausente.


Eu te amo
Desde a criação das águas,
desde a idéia do fogo
E antes do primeiro riso e da primeira mágoa.


Eu te amo perdidamente
Desde a grande nebulosa
Até depois que o universo cair sobre mim
Suavemente.

Adalgisa Néri - poetisa brasileira

quinta-feira, fevereiro 22, 2007

Histórias, Choros e Esperanças

Fotografia de Crianças do Haiti

No meu Muro das Lamentações
me encontro,
choro pela barbárie cometida,
entre irmãos e irmãos.

Luanda-Mãe, vejo de perto e longe
a tua imparável decadência:
"catorzinhas" de Roque de Santeiro,
meninas-mulheres subjugadas
à industria do sexo.
Ndengues(1) na rua que não é rua
delicia-se ávidos de comida
nas "panelas de 4 rodas".

Na Angola descrente e desacreditada,
“meninos de esgoto” sobrevivem
num mundo subterrâneo,
onde vivem para não lembrar,
permanecem estáticos pensando
que o mundo urbano é o perigo fatal,
a imaginação cavalga enquanto a realidade
lhes nega a panaceia sonhada.

E nossas mães Mãe...
morrem como animais
diante de nossos olhos
pelos "soldados perfeitos".
E nós Mãe, ao entardecer
refugiamo-nos em kubicos(2)
onde não dormimos, porque os
pesadelos de guerra reais
assombram-nos repetidamente.

A fome indelével
arrasta-nos para a morte inevitável,
as raízes de banana findaram,
então virámo-nos para os cães
e quando estes não mais encontramos,
os gatos seguiram-lhes.
E o inverso igualmente sucedeu.

Crianças pequenas reproduzem a guerra,
canas de milho transformam-se
repentinamente em armas de combate,
Fazendo-nos reviver o pesadelo da guerra.

Para aonde nos levam Mãe?
Seguimos em carrinhas,
levados por não sei quem,
para não sei onde.
Somos animais de troca,
a escravidão retornou.

Aqui no nosso país a ditadura
faz-se passar por democracia,
mas esta fazemos nós.
Sobrevivemos nos prédios
destruídos pelos confrontos,
subsistimos como os nossos
honrados avós,
no tempo em que as grilhetas
aprisionavam seus corpos.

De ti me arrancaram,
mesmo antes de nascer.
Reafricanizo-me tentando honrar-te,
luto por ti e pelos meus irmãos
procurando a África emancipada
livre da prisão da mente.
Redobro minhas forças
dignificando-te e elevando-te,
esperando um dia, o novo sol!


(1) Miúdos, crianças. (trem. kimbundo)
(2) Casas. (derivado do kimbundo)



Nelson Ngungu Rossano - poeta neo-afro-lusomestiço

quarta-feira, fevereiro 21, 2007

Visão

Fotografia de Thierry Le Goues

Vi-te passar, longe de mim, distante,
Como uma estátua de ébano ambulante;
Ias de luto, doce toutinegra,
E o teu aspecto pesaroso e triste
Prendeu minha alma, sedutora negra;
Depois, cativa de invisível laço,
(O teu encanto, a que ninguém resiste)
Foi-te seguindo o pequenino passo
Até que o vulto gracioso e lindo
Desapareceu longe de mim distante,
Como uma estatura de ébano no ambulante.


Caetano da Costa Alegre - poeta são-tomense

terça-feira, fevereiro 20, 2007

Soneto de Carnaval

Cara de um carnaval

Distante o meu amor, se me afigura
O amor como um patético tormento
Pensar nele é morrer de desventura
Não pensar é matar meu pensamento

Seu mais doce desejo se amargura
Todo o instante perdido é um sofrimento
Cada beijo lembrando uma tortura
Um ciúme do próprio ciumento.

E vivemos partindo, ela de mim
E eu dela, enquanto breves vão-se os anos
Para a grande partida que há no fim

De toda a vida e todo o amor humanos:
Mas tranquila ela sabe, e eu sei tranquilo
Que se um fica o outro parte a redimi-lo.


Vinicius de Morais - poeta brasileiro

domingo, fevereiro 18, 2007

Poema de Mulher

veronica_zemanova

Que mulher nunca teve
Um sutiã meio furado,
Um primo meio tarado,
Ou um amigo meio viado?

Que mulher nunca tomou
Um fora de querer sumir,
Um porre de cair
Ou um lexotan para dormir?

Que mulher nunca sonhou
Com a sogra morta, estendida,
Em ser muito feliz na vida
Ou com uma lipo na barriga?

Que mulher nunca pensou
Em dar fim numa panela,
Jogar os filhos pela janela
Ou que a culpa era toda dela?

Que mulher nunca penou
Para ter a perna depilada,
Para aturar uma empregada
Ou para trabalhar menstruada?

Que mulher nunca comeu
Uma caixa de Bis, por ansiedade,
Uma alface, no almoço, por vaidade
Ou, um canalha por saudade?

Que mulher nunca apertou
O pé no sapato para caber,
a barriga para emagrecer
Ou um ursinho para não enlouquecer?

Que mulher nunca jurou
Que não estava ao telefone,
Que não pensa em silicone
Ou que “dele” não lembra nem o nome?


Gisele - poetisa brasileira

sábado, fevereiro 17, 2007

Prostitutas Misérias entre Mar e Janelas

Pintura de Ivone Ralha



No quadragésimo aniversário

da explosão de Hiroshima





1. Nascemos quase pelas horas quase

iluminadas pelas cortinas que

ocultam a ausência humana. E

falecemos entre as sombras da

presença humana. A palavra sentida

há de calar a dor. Devíamos ter dito

duas vezes a oração bordada - a

estreita oração que nos ensinou a

bíblia de pedra. Da palavra sentida

há de nascer o amor. As avenidas

cantam e dizem lagartos para

escurecer as noites que nos vêm da

madrugada. Na palavra sentida há de

crescer a flor. Os leões inventam

microfones que em duas línguas

dizem tudo em duas palavras para os

ouvidos de dois mundos que se

ajoelham em dois caminhos. Temos

de conhecer o mar. Temos de dançar

ao pé das janelas. E crepúsculo

estará na neve do crepúsculo que há

de vir congregado em pedras do

crepúsculo.



2. O velho continente acordou e

deixou de sonhar com as estátuas de

cinza. A América se levantou e se

contorce de recessão espacial nos

pastos que enchem os peitos do gado

com o qual havemos de alimentar os

silêncios da África. As Américas

colecionam lembranças da

escravatura. E África coleciona

lábios para beijar folhas e árvores

perdidas no deserto por habitar. Aqui

os dias caem no chão e ninguém os

quer contar. Mas de noite cantamos

os dias que se abrem. Estendidos no

chão. Espiados pela mão que para a

noite vai. A carne, a flor, o sal, o

sangue e a água se misturam para

soprar felicidade ao mar e às

janelas. Temos de conhecer o mar.

Temos de dançar ao pé das janelas.

E o crepúsculo estará na neve do

crepúsculo que há de vir congregado

em pedras de crepúsculo.


João Maiomona - poeta angolano

sexta-feira, fevereiro 16, 2007

Receita de Mulher

Fotografia de Thierry Le Goues

As muito feias que me perdoem
Mas beleza é fundamental. É preciso
Que haja qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture
Em tudo isso (ou então
Que a mulher se socialize elegantemente em azul, como na República [Popular Chinesa).
Não há meio-termo possível. É preciso
Qu tudo isso seja belo. É preciso que súbito
Tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rosto
Adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da [aurora.
É preciso que tudo isso seja sem ser, mas que se reflita e desabroche
No olhar dos homens. É preciso, é absolutamente preciso
Que tudo seja belo e inesperado. É preciso que umas pálpebras cerradas
Lembrem um verso de Eluard e que se acaricie nuns braços
Alguma coisa além da carne: que se os toque
Como ao âmbar de uma tarde. Ah, deixai-e dizer-vos
Que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro
Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e
Seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem
Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos, então
Nem se fala, que olhem com certa maldade inocente. Uma boca
Fresca (nunca úmida!) e também de extrema pertinência.
É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos
Despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas, e as pontas pélvicas
No enlaçar de uma cintura semovente.
Gravíssimo é, porém, o problema das saboneteiras: uma mulher sem [saboneteiras
É como um rio sem pontes. Indispensável
Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida
A mulher se alteie em cálice, e que seus seios
Sejam uma expressão greco-romana, mais que gótica ou barroca
E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de 5 velas.
Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebral
Levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal!
Os membros que terminem como hastes, mas bem haja um certo volume de [coxas
E que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima [penugem
No entanto, sensível à carícia em sentido contrário.
É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprio
Apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!)
Preferíveis sem dúvida os pescoços longos
De forma que a cabeça dê por vezes a impressão
De nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre
Flores sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos góticos
Discretos. A pele deve ser fresca nas mãos, nos braços, no dorso e na face
Mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca [inferior
A 37° centígrados podendo eventualmente provocar queimaduras
Do 1° grau. Os olhos, que sejam de preferência grandes
E de rotação pelo menos tão lenta quanto a da Terra; e
Que se coloquem sempre para lá de um invisível muro da paixão
Que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta
Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros.
Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que, se se fechar os olhos
Ao abri-los ela não mais estará presente
Com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá
E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer [beber
O fel da dúvida. Oh, sobretudo
Que ele não perca nunca, não importa em que mundo
Não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade
De pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma
Transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre
O impossível perfume; e destile sempre
O embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto
Da sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina
Do efêmero; e em sua incalculável imperfeição
Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável.


Vinicius de Morais - poeta brasileiro

quarta-feira, fevereiro 14, 2007

Grito Negro

Zuimbi do Palmares - Herói Afro-brasileiro

Eu sou carvão!
E tu arrancas-me brutalmente do chão
e fazes-me tua mina, patrão.
Eu sou carvão!
E tu acendes-me, patrão,
para te servir eternamente como força motriz
mas eternamente não, patrão.
Eu sou carvão
e tenho que arder sim;
queimar tudo com a força da minha combustão.
Eu sou carvão;
tenho que arder na exploração
arder até às cinzas da maldição
arder vivo como alcatrão, meu irmão,
até não ser mais a tua mina, patrão.
Eu sou carvão.
Tenho que arder
Queimar tudo com o fogo da minha combustão.
Sim!
Eu sou o teu carvão, patrão.


José Craverinha -poeta luso-moçambicano

terça-feira, fevereiro 13, 2007

Os Homens Amam a Guerra

Guerra

Os homens amam a guerra. Por isso
se armam festivos em coro e cores
para o dúbio esporte da morte.

Amam e não disfarçam.
Alardeiam esse amor nas praças,
criam manuais e escolas,
alçando bandeiras e recolhendo caixões,
entoando slogans e sepultando canções.

Os homens amam a guerra. Mas não a amam
só com a coragem do atleta
e a empáfia militar, mas com a piedosa
voz do sacerdote, que antes do combate
serve a hóstia da morte.

Foi assim na Criméia e Tróia,
na Eritréia e Angola,
na Mongólia e Argélia,
no Saara e agora.

Os homens amam a guerra
E mal suportam a paz.

Os homens amam a guerra,
portanto,
não há perigo de paz.

Os homens amam a guerra, profana
ou santa, tanto faz.

Os homens têm a guerra como amante,
embora esposem a paz.

E que arroubos, meu Deus! nesse encontro voraz!
que prazeres! que uivos! que ais!
que sublimes perversões urdidas
na mortalha dos lençóis, lambuzando
a cama ou campo de batalha.

Durante séculos pensei
que a guerra fosse o desvio
e a paz a rota. Enganei-me. São paralelas
margens de um mesmo rio, a mão e a luva,
o pé e a bota. Mais que gêmeas
são xifópagas, par e ímpar, sorte e azar
são o ouroboro- cobra circular
eternamente a nos devorar.

A guerra não é um entreato.
É parte do espetáculo. E não é tragédia apenas
é comédia, real ou popular,
é algo melhor que circo:
-é onde o alegre trapezista
vestido de kamikase
salta sem rede e suporte,
quebram-se todos os pratos
e o contorcionista se parte
no kamasutra da morte.

A guerra não é o avesso da paz.
É seu berço e seio complementar.
E o horror não é o inverso do belo
-é seu par. Os homens amam o belo
mas gostam do horror na arte. O horror
não é escuro, é a contraparte da luz.
Lúcifer é Lubel, brilha como Gabriel
e o terror seduz.
Nada mais sedutor
que Cristo morto na cruz.

Portanto, a guerra não é só missa
que oficia o padre, ciência
que alucina o sábio, esporte
que fascina o forte. A guerra é arte.
E com o ardor dos vanguardistas
frequentamos a bienal do horror
e inauguramos a Bauhaus da morte.

Por isso, em cima da carniça não há urubu,
chacais, abutres, hienas.
Há lindas garças de alumínio, serenas,
num eletrônico balé.

Talvez fosse a dança da morte, patética.
Não é . É apenas outra lição de estética.
Daí que os soldados modernos
são como médico e engenheiro
e nenhum ministro da guerra
usa roupa de açougueiro.

Guerra é guerra!
dizia o invasor violento
violentando a freira no convento
Guerra é guerra!
dizia a estátua do almirante
com a boca de cimento.
Guerra é guerra!
dizemos no radar
desgustando o inimigo
ao norte do paladar.

Não é preciso disfarçar
o amor à guerra, com história de amor à pátria
e defesa do lar. Amamos a guerra
e a paz, em bigamia exemplar.
Eu, poeta moderno ou o eterno Baudelaire
eu e você, hypocrite lecteur,
mon semblable, mon frère.
Queremos a batalha, aviões em chamas
navios afundando, o espetacular confronto.

De manhã abrimos vísceras de peixes
com a ponta das baionetas
e ao som da culinária trombeta
enfiamos adagas em nossos porcos
e requintamos de medalha
-os mortos sobre a mesa.

Se possível, a carne limpa, sem sangue.
Que o míssil silente lançado à distância
não respingue em nossa roupa.
Mas se for preciso um banho de sangue
-como dizia Terêncio:-sou humano
e nada do que é humano me é estranho.

A morte e a guerra
não mais me pegam ao acaso.
Inscrevo sua dupla efígie na pedra
como se o dado de minha sorte
já não rolasse ao azar,
como se passasse do branco
ao preto e ao branco retornasse
sem nunca me sombrear.
Que venha a guerra! Cruel. Total.
O atômico clarim e a gênese do fim.
Cauto, como convém aos sábios,
primeiro bradarei contra esse fato.
Mas, voraz como convém à espécie,
ao ver que invadem meus quintais,
das folhas da bananeira inventarei
a ideológica bandeira e explodirei
o corpo do inimigo antes que ataque.
E se ele não atirar primeiro, aproveito
seu descuido de homem fraco, invado sua casa
realizando minha fome milenar de canibal
rugindo sob a máscara de homem.

-Terrível é o teu discurso, poeta!
Escuto alguém falar.
Terrível o foi elaborar.
Agora me sinto livre.
A morte e a guerra
já não podem me alarmar.
Como Édipo perplexo
decifrei-a em minhas vísceras
antes que a dúbia esfinge
pudesse me devorar.

Nem cínico nem triste. Animal
humano, vou em marcha, danças, preces
para o grande carnaval.
Soldado, penitente, poeta
-a paz e a guerra, a vida e a morte
me aguardam
- num atômico funeral.

-Acabará a espécie humana sobre a Terra?
Não. Hão de sobrar um novo Adão e Eva
a refazer o amor, e dois irmão:
-Caim e Abel
-a reinventar a guerra.


Affonso Romano de Sant'Anna - poeta brasileiro

segunda-feira, fevereiro 12, 2007

A Vida

Pintura de Suzart

A Vida é uma oportunidade: aproveita-a

A Vida é beleza: admira-a

A Vida é um dom: aprecia-o

A Vida é um sonho: realiza-o

A Vida é um desafio: aceita-o

A Vida é um dever: assume-o

A Vida é um jogo: joga-o

A Vida é cara: preserva-a

A Vida é um tesouro: conserva-o

A Vida é amor: saboreia-o

A Vida é mistério: aprofunda-o

A Vida é uma promessa: cumpre-a

A Vida é tristeza: ultrapassa-a

A Vida é uma canção: canta-a

A Vida é uma luta: trava-a

A Vida é uma tragédia: enfrenta-a

A Vida é uma aventura: ousa-a

A Vida é sorte: merece-a

A Vida é preciosa: não a destruas

A Vida é VIDA: luta por ela!


Madre Teresa de Calcutá (Agnes Gonxha Bojaxhiu)- macedónica e indiana

domingo, fevereiro 11, 2007

Transparência

Pintura de Ivone Ralha

Morrer é só não ser visto,
é sair de ao pé de ti,
apagar-me em tudo isto,
deixar de ver o que vi.

Morrer é não estar em ti,
e mais do que não te ver,
é não ser visto por ti,
no deserto do não ser.

Morrer é como apagar-se
a chama que houve em nós,
é uma espécie de ficar-se
vazio da própria voz.

Vive o amor da atenção
que se tem por quem se ama.
Mas a morte atiça em vão
o fio que não dá chama.

Morrer é só não ser visto,
é passar a pertencer
a um livro de registo
que guarda o nosso não-ser.

Eugénio Lisboa - poeta luso-moçambicano

sábado, fevereiro 10, 2007

Fala-me de Ti

Fotografia de Thierry Le Goues

Hoje não adormeças
deixa-me sentar diante de ti,
olhar-te o rosto como quem figura uma admirável película,
tactear-te a pele em descompasso
e ouvir-te a respiração como uma sussurrada melodia.



Hoje sou suspiro, sou leito, sou baía.



Fala-me de ti.



Fala-me de ti como quem implora uma súplica
como quem grita uma mudança
como quem chora uma dor
como quem lastima uma mágoa



Fala-me de ti como quem canta o dia
como quem rejubila o vento
como quem abraça o tempo
como quem sacia a paixão



Hoje fala-me de ti
e ficarei perdida na janela do teu mundo.


Vera Carvalho - poetisa portuguesa
(Em http://petalasminhas.blogspot.com)

O Bloco dos Bichos

Carnaval

No Baile de Gala
A máscara identifica a persona
Disfarça, esconde o âmago.
Dilui a personalidade.
Exclui a possibilidade do encontro.

Permite a licenciosidade do toque.
O esfrega, a entrega no banho de suor
Espumante, regado à cerveja.
No vapor de cigarros tragados
Ao fundo o cheiro do lixo.

A cana vai e vem
Nem tudo que reluz é ouro.
Nem tudo que balança cai.

O galo canta antes das 3 da manhã
A gata mia antes da meia-noite
O cão ladra ao ouvir o som da orquestra.

A cigarra não quer saber do amanhã.
A vaca berra sonhando com o açoite
O queijo, a ratazana sequestra.

A formiga encalhada
Azara o pernilongo
Mas quem leva a picada
É a filha do marimbondo.

Também com aquela bunda
Até o pacato piolho
Quer encostar o ferrão.

O morcego desfruta a intimidade do salão
Antes que o amanhecer traga a solidão.
O peixe fora do aquário
Dança na boquinha da garrafa.

As peruas rebolam quando ouvem glu-glu-glu
As patas aproveitam enquanto o pavão empina o rabo.

Orwell já cantou essa pedra.
Por isso vou-me embora
Antes que o porco entregue a folia,
E humanos insanos transformem a orgia animal
Em suruba no matadouro.

Carne vã
Carne vai
Carne vem
Em vão.

Amanhã, tudo em postas no super-mercado
Dispostas em invólucros que dão lucro
Na TV a manchete do Santo Sepulcro.

O déspota disputa
A puta regateia o preço
O michê michou, brochou
Foi enrabado, pelo salto do sapato.

E ainda dizem que é a noite do meu bem !

Vou-me embora pra Pasárgada
Mesmo que o Rei tenha sido destronado.

Por que, se por aqui não agrado
Pelo menos lá
Sei que não sou parte do gado.


Ricardo Muniz de Ruiz - poeta mameluco brasileiro
(Cosme Velho, 9/02/2007)

quinta-feira, fevereiro 08, 2007

Lua

Pintura de Ivone Ralha

Queria o semblante sereno da lua
com leveza muitas almas tocar
navegar plena nas estrelas
muitas músicas dançar

queria a magia da lua
adormecer nos flocos das nuvens
voar como folhas-plumas
e carícias-flores soprar

queria a inspiração da lua
ao luar te amar
escorregar doçuras-ternuras
nos braços da poesia te encantar...

Maria Thereza Neves - poetisa brasileira

quarta-feira, fevereiro 07, 2007

Ilha

Cidade da Praia

Tu vives — mãe adormecida —
nua e esquecida,
seca,
fustigada pelos ventos,
ao som de músicas sem música
das águas que nos prendem…

Ilha:
teus montes e teus vales
não sentiram passar os tempos
e ficaram no mundo dos teus sonhos
— os sonhos dos teus filhos —
a clamar aos ventos que passam,
e às aves que voam, livres,
as tuas ânsias!

Ilha:
colina sem fim de terra vermelha
— terra dura —
rochas escarpadas tapando os horizontes,
mas aos quatro ventos prendendo as nossas ânsias!


Amílcar Lopes Cabral - poeta e anti-colonialista guiniensse/cabo-verdiano
(Praia, Cabo Verde, 1945)

terça-feira, fevereiro 06, 2007

África


Em meus lábios grossos fermenta
a farinha do sarcasmo que coloniza minha Mãe África
e meus ouvidos não levam ao coração seco
misturado com o sal dos pensamentos
a sintaxe anglo-latina de novas palavras.

Amam-me com a única verdade dos seus evangelhos
a mística das suas missangas e da sua pólvora
a lógica das suas rajadas de metralhadora
e enchem-me de sons que não sinto
das canções das suas terras
que não conheço.

E dão-me
a única permitida grandeza dos seus heróis
a glória dos seus monumentos de pedra
a sedução dos seus pornográficos Rolls Royce
e a dádiva quotidiana das suas casas de passe.

Ajoelham-me aos pés dos seus deuses de cabelos lisos
e na minha boca diluem o abstracto
sabor da carne de hóstias em milionésimas
circunferências hipóteses católicas de pão.

E em vez dos meus amuletos de garras de leopardo
vendem-me a sua desinfectante benção
a vergonha de uma certidão de filho de pai incógnito
uma educativa sessão de «strip-tease» e meio litro
de vinho tinto com graduação de álcool de branco
exacta só para negro
um gramofone de magaíça
um filme de heróis de carabina ao vencer traiçoeiros
selvagens armados de penas e flechas
e o ósculo das balas e aos gases lacrimogéneos
civiliza o meu casto impudor africano.

Efígies de Cristo suspendem ao meu pescoço
rodelas de latão em vez dos meus autênticos
mutovanas da chuva e da fecundidade das virgens
do ciúme e da colheita de amendoim novo.
E aprendo que os homens que inventaram
A confortável cadeira eléctrica
a técnica de Buchenwald e as bombas V2
acenderam fogos de artifício nas pupilas
de ex-meninos vivos de Varsóvia
criaram Al Capone, Hollywood, Harlem
a seita Ku-Klux Klan, Cato Mannor e Sharpeville*
e emprenharam o pássaro que fez o choco
sobre o ninho morno de Hiroshima e Nagasaki
conheciam o segredo das parábolas de Charlie Chaplin
lêem Platão, Marx, Gandhi, Einstein e Jean-Paul Sartre
e sabem que Garcia Lorca não morreu mas foi assassinado
são os filhos dos santos que descobriram a Inquisição
perverteram de labaredas a crucificada nudez
da sua Joana D’Arc e agora vêm
arar os meus campos com charruas «made in Germany»
mas já não ouvem a subtil voz das árvores
nos ouvidos surdos do espasmo das turbinas
não lêem nos meus livros de nuvens
o sinal das cheias e das secas
e nos seus olhos ofuscados pelos clarões metalúrgicos
extingiu-se a eloquente epidérmica beleza de todas
as cores das flores do universo
e já não entendem o gorjeio romântico das aves de casta
instintos de asas em bando nas pistas do éter
infalíveis e simultâneos bicos trespassando sôfregos
a infinta côdea impalpável de um céu que não existe.
E no colo macio das ondas não adivinham os vermelhos
sulcos das quilhas negreiras e não sentem
como eu sinto o prenúncio mágico sob os transatlânticos
da cólera das catanas de ossos nos batuques do mar.
E no coração deles a grandeza do sentimento
é do tamanho cow-boy do nimbo dos átomos
desfolhados no duplo rodeo aéreo do Japão.

Mas nos verdes caminhos oníricos do nosso desespero
Perdoo-lhes a sua bela civilização à custa do sangue
ouro, marfim, amens
e bíceps do meu povo.

E ao som másculo dos tantãs tribais o eros
do meu grito fecunda o húmus dos navios negreiros...
E ergo no equinócio da minha Terra
o moçambicano rubi do mais belo canto xi-ronga
e na insólita brancura dos rins da plena Madrugada
a necessária carícia dos meus dedos selvagens
é a táctica harmonia de azagaias no cio das raças
belas como altivos falos de ouro
erectos no ventre nervoso da noite africana.

* Cato Mannor e Sharpeville: nomes de lugares onde
ocorreram repressões policiais sangrentas na África do Sul
(1960) sobre trabalhadores africanos



José Craveirinha - poeta luso-moçambicano
(Xigubo. Maputo: AEMO, 1995, pp. 10-12)

Karingana ua Karingana*

Nelson Ngungu Rossano

(O poeta Nelson Ngungu Rossano declamando poesia
do seu livro - eu no Café Sabor e Arte soltando poesia vadia)

Este jeito
de contar as coisas
à maneira simples das profecias
– Karingana ua karingana
é que faz a arte sentir
o pássaro da poesia.

E nem
de outra forma se inventa
o que é dos poetas
nem se transforma
a visão do impossível
em sonho do que pode ser.
– Karingana!

*Era uma vez (T. Xi-ronga)


José Craveirinha – poeta luso-moçambicano
(Karingana ua karingana. Lourenço Marques:
Edição da Académica, 1974, p. 3)

segunda-feira, fevereiro 05, 2007

No Meio Do Caminho

Uma Pedra no Meio do Caminho

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

Carlos Drummond de Andrade - poeta brasileiro
(Em Alguma Poesia Ed. Pindorama, 1930)

sábado, fevereiro 03, 2007

Extrapolações Etílicas

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Para Marina Colassanti

...sabe gatinha,
Eu sou um cara expansivo
Às vezes meio agressivo
Também sei ser agradável e afável.

Ao sabor da Rosa-dos-Ventos
Tenho a presença dos quatro elementos
Além dos sete pecados capitais.

Na dialética da madrugada
A filosofia de botequim
Produz porres acadêmicos!
A tese da menina ao lado
Vira tesão na menina da frente
A iniciativa da cantada
Ou solidão nessa madrugada.

Tora! Tora! Tora!
Os líquidos ingeridos
E os fluidos endêmicos
Começam a surtir efeito.
Produzem delírios tremendos
Prazeres paranormais
Às vezes gozos poderosos
Noutras orgasmos mentirosos.

A Egrégora da Mandrágora
Tece teias aracnídeas
Onde somos presas fáceis
Do Apolíneo e o
Dionísiaco!

Ricardo Muniz de Ruiz - poeta Mameluco brasileiro

sexta-feira, fevereiro 02, 2007

Bela. A Brasileira.

Mulheres do brasil

Não é só bunda, carnaval e samba não,
Bela tem muito carinho e amor no coração.
Não é só bunda, carnaval e samba não,
Bela tem muito carinho e amor no coração.

Seja ela preta, branca ou mulata,
se o homem lhe apalpa a bunda, ela torce que se farta

Não é só bunda, carnaval e samba não,
Bela tem muito carinho e amor no coração.
Não é só bunda carnaval e samba não,
Bela tem muito carinho e amor no coração.

Seja ela preta, branca ou mulata,
se o homem lhe apalpa a bunda, ela torce que se farta

Não é só bunda, carnaval e samba não,
Bela tem muito carinho e amor no coração.
Não é só bunda, carnaval e samba não,
Bela tem muito carinho e amor no coração

David Santos - poeta português
(Direitos SBA Brasil)
Deserto do Namíbe

Outrora
para lá da riqueza
eram areias e areais sem fim...
reprimidas para além da cidade e do asfalto.
Outrora foram brisas verdes
ao sonho rubro-negro do vento.

Hoje,
depois de sonhos desfeitos e dias-noites guerra
ainda te consomes e perdes
sobre areias e areais sem fim
e eu vejo, cheiro, sinto:
tantos, tantos MISSEKE!

Namíbiano Ferreira - poeta angolano

quinta-feira, fevereiro 01, 2007

Dialogando Com As Estrelas

Das Estrelas Angola


Às estrelas
Vou falar das moças belas
Algures com um filho nos braços
No rosto os traços
De uma promessa não cumprida
Depois do corpo usado

Às estrelas
Vou falar dos mutilados
Não terão sido enganados?
E a angústia daquelas
Que debalde esperam pelos maridos
Numa mata qualquer desaparecidos e esquecidos

Às estrelas
Vou falar das crianças famintas
E gritar quantas
De entre elas
Morrem de fome
Antes mesmo de terem um nome

Às estrelas
Vou falar da guerra
Aqui na minha terra
E perguntar se no mundo delas
Também é assim
Com matanças sem fim

Às estrelas
Vou falar das celas
Em que aprisionaram a liberdade
E encarceraram a felicidade
Numa noite qualquer
Para esquecer

Às estrelas
Vou pedir um passaporte
Com visto para marte
Em venturosas escalas
Rumo ao infinito universo
Deixando para trás este mundo perverso

Às estrelas
Vou falar com elas...


Décio Bettencourt Mateus - poeta angolano
in "A Fúria do Mar"