sexta-feira, dezembro 15, 2006

Perfumes

Sul-Africana



1

cheiros cheios
de desejo
perfuram
veios


2
contra olfatos
não há argumentos



Frederico Barbosa - poeta Brasileiro

quinta-feira, dezembro 14, 2006

Um Dia




Um dia, gastos, voltaremos
A viver livres como os animais
E mesmo tão cansados floriremos
Irmãos vivos do mar e dos pinhais.

O vento levará os mil cansaços
Dos gestos agitados irreais
E há-de voltar aos nosso membros lassos
A leve rapidez dos animais.

Só então poderemos caminhar
Através do mistério que se embala
No verde dos pinhais na voz do mar
E em nós germinará a sua fala.


Sophia de Mello Breyner – poetisa portuguesa

quarta-feira, dezembro 13, 2006

Revelação

Lúcifer



Valete

Esta é a palavra dos teus filhos que tu nunca amparaste
aqueles que te amaram e tu abandonaste
aqueles que te chamaram e que tu desprezaste
aqueles que guerrearam quando tu recuaste
aqueles que acreditaram sem que tu te revelasses
aqueles que mendigaram e tu não alimentaste
aqueles que se esgotaram, tombaram, arrastaram-se
definharam, imploraram-te e tu não levantaste
que Mundo é esse que se alimenta da nossa amargura
e que se sustenta o seu progresso com a nossa penúria
será que não ouves as lágrimas afilhadas da sorte,
e os corações que batem resignados à espera da morte?

Deus

Eu sou o vosso Deus, sou o vosso criador
eu sou a vossa luz, pai , juiz , protector
eu nunca vos abandono eu estou sempre por perto
e através da fé , sentirão meu afecto
basta acreditar em mim e seguir os meus ensinamentos
que terão a salvação e acabará o tormento
fraquejarás se duvidares da minha existência
porque a chave da libertação reside na crença

Valete refrão

Mas onde é que estás
quando o sofrimento nos aprisiona
quando até a Esperança diz que já não vale a pena
quando todo esse Mal se apodera dos homens alastra-se e elimina
todo o Bem que nos abrigou

Onde é que tu estás
quando a fome abate mais um crente
quando a felicidade passa a utopia dos dementes
quando a escuridão invade o nosso espaço assume-se
soberana sobre o Sol que nos criou


Valete

Eu vi-te nos versos que a beleza tornou poesia
na esperança que o sol trazia em cada novo dia
no cravo vermelho que resistia nas noites sombrias
no amor destes homens de bolsos e mãos vazias
eu vi-te na espada que ensanguentou Lúcifer
no futuro que florescia no ventre duma mulher
na causa dos justos que a ambição não destruiu
e no sorriso das crianças que a inocência pariu
mas perdi-te intensidade desta dor permanente
no estrondo das balas que levaram gente inocente
na frieza dos tiranos que a Democracia formou
na exploração dos fracos o Mundo legitimou

Deus

eu não sou a única força transcendente deste Universo
o Diabo também existe, é o Senhor do Mundo Perverso
é ele que divide e atrai os homens ao pecado
tu tens que resistir o Diabo é obstinado
eu dei-vos livre arbítrio, liberdade total
cabe a cada um de vós decidir entre o Bem o Mal
é a falta de Moral que traz desordem e desgraça
se viverem por mim o Mal deixará de ser ameaça


Valete refrão


Valete

Eu não percebo a tua existência e o teu poder transcendente
do que vale saberes tudo se continuamos inconscientes
do que vale poderes tudo se nós vemos sofrimento
do que vale veres tudo se nunca te fazes presente
quando parece que te manifestas, escondes-te num ápice
como te escondeste naquele nevoeiro que encobriu Auschwitz
naus partiram com escravos e tu ficaste à varanda
camuflaste a mancha de sangue que inundou o Ruanda

Deus

Seria tudo assim bem fácil a culpares-me de tudo
mas são os homens a causa do descalabro do mundo
eu não posso interferir, apenas assisto e analiso
só no julgamento final é que eu corrijo e decido
lembra-te que a vida terrena é só uma passagem
e depois da morte ainda terás uma portagem
os pecadores serão punidos e arderão no Inferno
os bons serão felizes no Paraíso eterno

Valete

Não tem sentido
Então porque é que não nascemos logo no Paraíso?

Deus revelando-se

Tu fazes muitas críticas, acusações e perguntas
agora vou abrir o jogo, só para ver se tu aguentas
Deus só existe fantasiado na vossa mente
eu sou Diabo, o único ser superior existente
vocês são minha criação, feitos à minha semelhança
por isso é que o mundo é um palco de Malevolência
quando praticam o Bem é só um acto de desobediência
vossos instintos naturais são o ódio e a ganância
terão sempre a ditadura, a escravatura, a opressão
descriminação, censura, repressão
minha função foi criar-vos para autodestruírem-se
para fustigarem-se, invejarem-se, consumirem-se
para mergulharem na imperfeição, erro e pecado
enlamaçarem-se no Mal que eu tenho libertado
vou assistir, disperto e alegre ao vosso caos inquieto
até este planeta se tornar na Terra-Mãe do inferno

Deus só existe fantasiado na vossa mente


Anjo Negro

Será em vão rezares por um sonho que não verás
e ambicionares por um Mundo que não terás
não esperes Justiça onde nunca houve Paz
não há salvação nas terras de Satanás


Valete – Rapper e poeta luso-santomense

segunda-feira, dezembro 11, 2006

Nhã Codê

Negro Amotinado


Tiraram o lume dos teus olhos
e fizeram braseiro
para aquecer a noite fria;
noite de qualquer dia.
Roubaram o teu riso
e encheram de gargalhadas
de luz e de música
as suas reuniões frustradas.
Da tua pele fizeram tambor
para nos ajuntar no terreiro!
Dondê nha Codê?
Não
não mataram o meu filho
que eu sei que o meu filho não morre.

(Se choro
são saudades de nha Codê...)
Nha Codê vive
na evocção de um mundo distante
no riso e no choro das ervas rasteiras
na solidão dos campos
nas pândegas de marinheiros
na vida que nasce e morre
em cada dia que passa!
... E em mim
essa saudade de nha Codê!


TERÊNCIO ANAHORY – poeta cabo-verdiano
(Em "Caminho longe", 1962)

domingo, dezembro 10, 2006

Vozes D'África

Busca de Suzart


DEUS! Ó Deus! Onde estás que não respondes?
Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes
Embuçado nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito,
Que embalde desde então corre o infinito...
Onde estás, Senhor Deus?...

Qual Prometeu tu me amarraste um dia
Do deserto na rubra penedia
— Infinito: galé!...
Por abutre — me deste o sol candente,
E a terra de Suez — foi a corrente
Que me ligaste ao pé...

O cavalo estafado do Beduíno
Sob a vergasta toma ressupino
E morre no areal.
Minha garupa sangra, a dor poreja,
Quando o chicote do simoun dardeja
O teu braço eternal.

Minhas irmãs são belas, são ditosas...
Dorme a Ásia nas sombras voluptuosas
Dos haréns do Sultão.
Ou no dorso dos brancos elefantes
Embala-se coberta de brilhantes
Nas plagas do Hindustão.

Por tenda tem os cimos do Himalaia...
O Ganges amoroso beija a praia
Coberta de corais...
A brisa de Misora o céu inflama:
E ela dorme nos templos do Deus Brama,
— Pagodes colossais...

A Europa é sempre Europa, a gloriosa!...
A mulher deslumbrante e caprichosa,
Rainha e cortesã.
Artista — corta o mármore de Carrara;
Poetisa — tange os hinos de Ferrara,
No glorioso afã!...

Sempre a láurea lhe cabe no litígio...
Ora uma c'roa, ora o barrete frígio
Enflora-lhe a cerviz.
O Universo após ela — doudo amante —
Segue cativo o passo delirante
Da grande meretriz.

Mas eu, Senhor!... Eu triste abandonada
Em meio das areias esgarrada,
Perdida marcho em vão!
Se choro... bebe o pranto a areia ardente;
Talvez... p'ra que meu pranto, ó Deus clemente!
Não descubras no chão...

E nem tenho uma sombra de floresta...
Para cobrir-me nem um templo resta
No solo abrasador...
Quando subo às Pirâmides do Egito
Embalde aos quatro céus chorando grito:
"Abriga-me, Senhor!..."

Como o profeta em cinza a fronte envolve,
Velo a cabeça no areal que volve
O siroco feroz...
Quando eu passo no Saara amortalhada...
Ai! Dizem: "Lá vai África embuçada
No seu branco albornoz..."

Nem vêem que o deserto é meu sudário,
Que o silêncio campeia solitário
Por sobre o peito meu.
Lá no solo onde o cardo apenas medra
Boceja a Esfinge colossal de pedra
Fitando o morno céu.

De Tebas nas colunas derrocadas
As cegonhas espiam debruçadas
O horizonte sem fim...
Onde branqueja a caravana errante,
E o camelo monótono, arquejante
Que desce de Efraim...

Não basta inda de dor, ó Deus terrível?!
É, pois, teu peito eterno, inexaurível
De vingança e rancor?...
E que é que fiz, Senhor? Que torvo crime
Eu cometi jamais que assim me oprime
Teu gládio vingador?!...

Foi depois do dilúvio... Um viandante,
Negro, sombrio, pálido, arquejante,
Descia do Arará...
E eu disse ao peregrino fulminado:
"Cão!... Serás meu esposo bem-amado...
— Serei tua Eloá..."

Desde este dia o vento da desgraça
Por meus cabelos ululando passa
O anátema cruel.
As tribos erram do areal nas vagas,
E o Nômada faminto corta as plagas
No rápido corcel.

Vi a ciência desertar do Egito...
Vi meu povo seguir — Judeu maldito —
Trilho de perdição.
Depois vi minha prole desgraçada
Pelas garras d'Europa — arrebatada —
Amestrado falcão!...

Cristo! embalde morreste sobre um monte...
Teu sangue não lavou de minha fronte
A mancha original.
Ainda hoje são, por fado adverso,
Meus filhos — alimária do universo,
Eu — pasto universal...

Hoje em meu sangue a América se nutre
— Condor que transformara-se em abutre,
Ave da escravidão,
Ela juntou-se às mais... irmã traidora
Qual de José os vis irmãos outrora
Venderam seu irmão.

Basta, Senhor! De teu potente braço
Role através dos astros e do espaço
Perdão p'ra os crimes meus! ...
Há dois mil anos... eu soluço um grito...
Escuta o brado meu lá no infinito,
Meu Deus! Senhor, meu Deus!! ...

Antônio de Castro Alves – poeta afro-mameluco-brasileiro
São Paulo, 11 de Junho de 1868

sexta-feira, dezembro 08, 2006

Costra o Vento e as Marés

Ernesto Che Guevara


Este poema (contra o vento e as marés) levará minha assinatura.
Deixo-lhes seis sílabas sonoras,
um olhar que sempre traz (como um passarinho ferido) ternura,
Um anseio de profundas águas mornas,
Um gabinete escuro em que a única luz são esses versos meus,
um dedal muito usado para suas noites de enfado,
um retrato de nossos filhos.
A mais linda bala desta pistola que sempre me acompanha,
a memória indelével (sempre latente e profunda) das crianças
que, um dia, você e eu concebemos,
e o pedaço de vida que resta em mim.
Isso eu dou (convicto e feliz) à revolução.
Nada que nos pode unir terá força maior.


Ernesto Che Guevara – revolucionário e poeta Argentino-Cubano

quinta-feira, dezembro 07, 2006

Declaração

Luto!


Eu, abaixo assinado, embalsamador de profissão,
declaro por minha honra
que deste corpo extraí o que pulsava
e fazia cumprir suas funções
quando funcionava.
Mais declaro que nele não encontrei
outro elemento além dos ditos e descritos
nos comuns manuais de anatomia.
Ausentes dele qualquer abstracção,
sintomas de tristeza, desagrado,
sinais de medo ou discordância
em relação à hora da paragem.
Por minha fé ainda certifico
a apropriada condição estéril
do que remanesceu e expeço via aérea
com garantia firme
de ser reconhecido por quem o conheceu
quando o corpo era inteiro e se reconhecia.

Leite de Vasconcelos – poeta luso-moçambicano

Do livro “Irmão do Universo”, edição da
AEMO/93, página 101.