sexta-feira, setembro 29, 2006

A Meu favor

Modelo Dinamarquesa Helenan Christensen


A meu favor
Tenho o verde secreto dos teus olhos
Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
O tapete que vai partir para o infinito
Esta noite ou uma noite qualquer

A meu favor
As paredes que insultam devagar
Certo refúgio acima do murmúrio
Que da vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde a aventura recomeça.

Alexandre O’neill – poeta português

Em, «Poesias Completas 1951-1986»,
Imprensa Nacional, Lisboa, 1990.

quinta-feira, setembro 28, 2006

Canção do Silêncio

Amanhecer de Samuel Vincente

Pintura de Samuel Vincente



Ouvindo o silêncio das coisas remotas,
Distingo legendas que os outros não
lêem...
Vislumbro paisagens confusas, remotas,
- Silhuetas de imagens que muitos não
vêem!...

Desvendo os mistérios da selva distante,
Aonde costuma rugir o leão...
- Arroios cantando, num som murmurante,
Anharas perdidas p'ra além do sertão...

Capim verdejante nas humidas chanas,
Lençol de esmeralda que o sol vai
corando...
Matizes da selva, luar das savanas,
Mabecos fugindo, pacacas pastando...

Silêncio das noites sombrias, caladas,
Segredos da selva, murmúrios da aragem...
-Holongos ligeiros, fugindo, em manadas,
Regatos correndo por entre a folhagem...

Latidos de hienas em torno dos quimbos,
Já dentro da noite, se a fome as aperta;
Quimbundas alegres, sachando os arimbos
Depois que o som cavo do goma as desperta

Chingufos ao longe – rufar permanente –
Chamando ao batuque de intensa folganca...

E os pretos, gingando pra trás e pra
frente,
Agitam as ancas na febre da dança!...

E a lua, do alto – qual "hostia boiante" –

Envolve o cenário num manto sidério...
- Canção do silêncio da selva distante,
Bem poucos entendem teu som de mistério!
...


M. Correia da Silva
Em " Cantares de Angola "

quarta-feira, setembro 27, 2006

Dos Povos Buscamos a Força

Os Inteligentes


Não basta que seja pura e justa
a nossa causa
É necessário que a pureza e a justiça
existam dentro de nós.

Dos que vieram
e conosco se aliaram
muitos traziam sobras no olhar
intenções estranhas.

Para alguns deles a razão da luta
era só ódio: um ódio antigo
centrado e surdo
como uma lança.

Para alguns outros era uma bolsa
bolsa vazia (queriam enchê-la)
queriam enchê-la com coisas sujas
inconfessáveis.

Outros viemos.
Lutar pra nós é ver aquilo
que o Povo quer
realizado.
É ter a terra onde nascemos.
É sermos livres pra trabalhar.
É ter pra nós o que criamos
Lutar pra nós é um destino –
é uma ponte entre a descrença
e a certeza do mundo novo.

Na mesma barca nos encontramos.
Todos concordam – vamos lutar.

Lutar pra quê?
Pra dar vazão ao ódio antigo?
ou pra ganharmos a liberdade
e ter pra nós o que criamos?

Na mesma barca nos encontramos
Quem há-de ser o timoneiro?
Ah as tramas que eles teceram!
Ah as lutas que aí travamos!

Mantivemo-nos firmes: no povo
buscámos a força
e a razão

Inexoravelmente
como uma onda que ninguém trava
vencemos.
O Povo tomou a direcção da barca.

Mas a lição lá está, foi aprendida:
Não basta que seja pura e justa
a nossa causa
É necessário que a pureza e a justiça
existam dentro de nós

Agostinho Neto – poeta angolano

terça-feira, setembro 26, 2006

As Sombras Correm

Sombras Brancas



As sombras correm soltas pela noite
à cata de suas formas apagadas,
tecendo solidões que são abismos,
sinais que são multiplicadas máscaras


de uma face movida pela luz
que desata do feixe o movimento
e se dispersa em fugas para atar-se
à unidade que flui do próprio tempo.


Os cabelos transformam-se em ramagens,
as árvores caminham. As florestas
combatem. Exercita a quadratura
do circulo o artesão moldando a pedra,


polindo arestas, desenhando a fórmula
da sombra em sua ordenação geométrica
como um todo partido que se reúne
pelo esforço que move o vento, a terra.


As águas correm negras, desatadas
das formas, com seus silvos de serpentes
nervosas sobre o leito das estradas,
luzindo a cor sinistra das correntes.


(...)


Sobre a boca formosa adormecida
tímidas aves, asas assustadas
sobrevoavam ligeiras com os bicos
famintos, a procura do arrozal


perdido na quietude da calada
planície verde agora adormecida
pela brisa da morte tal um mar
de pedra a desafiar a clara vida.


O rosto transformara-se em metal
e recusava dar-se ao movimento
dos círculos em vôo a procura
da cantora partida: apenas vinha


com a quietude amarga o frio som
de prata antiga da serena chuva
a derramar-se em finas linhas de água
nas figuras sonâmbulas da rua.


Eu a vi por detrás da clara máscara
armada para a vida com bandeiras
desfraldadas no corpo. A face dura
denunciava a cantora, ave guerreira.


Vi pedrarias na corrente verde
da fala, o brilho de esmeralda ardia
e inundava de líquidas vogais
a sala prisioneira da poesia.


(...)


Eu vi a palavra fora de sua boca
desenrolar o manto da poesia.
O som criava pássaros alegres
que voavam e desapareciam.


O encanto era tal que se perdia
a imagem verdadeira, e vi a palavra
transformar-se de nítido metal
em labareda, em fogo, em sombra alada,


com as asas abertas sobre nós:
o rumor da poesia urdia a voz
e o pássaro incendiava-se na luz
que sua fala espargia (negro sol).

Foed Castro Chamma – poeta brasileiro

domingo, setembro 24, 2006

Estátua Falsa

Estátua Falsa de Sigmar Polke

Estátua de Sigmar Polke


Só de ouro falso os meus olhos se douram;
Sou esfinge sem mistério no poente.
A tristeza das coisas que não foram
Na minha'alma desceu veladamente.


Na minha dor quebram-se espadas de ânsia,
Gomos de luz em treva se misturam.
As sombras que eu dimano não perduram,
Como Ontem, para mim, Hoje é distância.


Já não estremeço em face do segredo;
Nada me aloira já, nada me aterra:
A vida corre sobre mim em guerra,
E nem sequer um arrepio de medo!


Sou estrela ébria que perdeu os céus,
Sereia louca que deixou o mar;
Sou templo prestes a ruir sem deus,
Estátua falsa ainda erguida ao ar...

Mário Sá Carneiro – poeta português
(Em Paris, 5 de Maio de 1913)

sexta-feira, setembro 22, 2006

A Mulemba Secou

Velho Africano


No barro da rua,
Pisadas, por toda a gente,
Ficaram as folhas
Secas, amareladas
A estalar sob os pés de quem passava.

Depois o vento as levou...

Como as folhas da mulemba
Foram-se os sonhos gaiatos
Dos miúdos do meu bairro.

(De dia,
Espalhavam visgo nos ramos
E apanhavam catituis,
Viúvas, siripipis
Que o Chiquito da Mulemba
Ia vender no Palácio
Numa gaiola de bimba.

De noite,
Faziam roda, sentados,
A ouvir, de olhos esbugalhados
A velha Jaja a contar
Histórias de arrepiar
Do feitiçeiro Catimba.)

Mas a mulemba secou
E com ela,
Secou também a alegria
Da miúdagem do bairro;

O Macuto da Ximinha
Que cantava todo o dia
Já não canta.
O Zé Camilo, coitado,
Passa o dia deitado
A pensar em muitas coisas.
E o velhote Camalundo,
Quando passa por ali,
Já ninguém o arrelia,
Já mais ninguém lhe assobia,
Já faz a vida em sossego.

Como o meu bairro mudou,
Como o meu bairro está triste
Porque a mulemba secou...

Só o velho Camalundo
Sorri ao passar por lá!...

Aires de Almeida Santos – poeta luso-angolano

quinta-feira, setembro 21, 2006

Canção Na Morte de nga-Caxombo

 Imagem de Ivone Ralha

Pintura de Ivone Ralha



Olho nga-Caxombo ali
na esteira
deitado morto
a todo comprimento

Vejo-o caminhar sem descanso
do Amboim ao Seles
do Seles ao Quipeio
outra vez ao Seles
rotas sem rota mato longe
quem que sabia?

Tipóia o ombro pesava que pesava
duramente Zua
e voz de Kalandu
voz serena do sertão
ele a escutava
através do fogo
através da água
o jeito sem raízes
de amar o coração das coisas.

Olho-o pela vez última
na luz rasante desse dez de Julho
a barba à monangamba
cavada sua negra face
morto
deitado morto
a todo o comprimento.


João-Maria Vilanova – poeta (presumível) angolano

(No reino de Caliban II - antologia
Panorâmica de poesia africana de
Expressão portuguesa)

terça-feira, setembro 19, 2006

Poema à Mãe Angola

Desenho Choqwe



Avança Mãe Angolana
E dá o melhor de ti própria
Nesta luta de vida ou de morte
Avança pelos rios perigosos
Pelos pântanos lodosos
Pela savanas sem fim

Avança pelo incomensurável horror da guerra
Entre a chuva de bombas que ilumina a terra
Mas avança porque é necessário

Avança com teus braços feitos asas
Abertas sobre o solo pátrio
Para proteger os teus filhos

Não te detenhas nos gemidos do vento
Não prendas à forma das flores
Sublima o amor neste momento

Avança Mãe Angolana
Que a tua coragem fará vacilar os soldados
Os soldados que já foram meninos
Os soldados
A que o fascismo tolheu a vontade
E que caminham sobre os cadáveres das crianças
Com risos sarcásticos de vingança...

Avança Mãe Angolana
Na terra ensopada de sangue
Dor e lágrimas
Causadas pela guerra

Que ela florescera
Sustentada pelo teu querer
E terás para os teus filhos
O sol aberto nas pétalas
E a serenidade dos heróis
Depois de ganha a batalha.

Eugénia Neto – poetisa luso-angolana

segunda-feira, setembro 18, 2006

Vaidosa

Imagem de Thierry Le Goues

Foto de Thierry Le Goues


Dizem que tu és pura como um lírio
E mais fria e insensível que o granito,
E que eu que passo por aí por favorito
Vivo louco de dor e de martírio.

Contam que tens um modo altivo e sério,
Que és muito desdenhosa e presumida,
E que o maior prazer da tua vida,
Seria acompanhar-me ao cemitério

Chamam-te a bela imperatriz das fátuas,
A déspota, a fatal, o figurino,
E afirmam que és um molde alabastrino,
E não tens coração, como as estátuas.

E narram o cruel martirológio
Dos que são teus, ó corpo sem defeito,
E julgam que é monótono o teu peito
Como o bater cadente dum relógio.

Porém eu sei que tu, que como umópio
Me matas, me desvairas e adormeces
És tão loira e doirada como as messes
E possuis muito amor... muito amor-próprio.

Cesário Verde – poeta português

domingo, setembro 17, 2006

Valsa dum Homem Carente

Sonho de valsa

Pintura de Marcio Melo


Se alguma vez te parecer
ouvir coisas sem sentido
não ligues, sou eu a dizer
que quero ficar contigo
e apenas obedeço
com as artes que conheço
ao princípio activo
que rege desde o começo
e mantém o mundo vivo

Se alguma vez me vires fazer
figuras teatrais
dignas dum palhaço pobre
sou eu a dançar a mais nobre
das danças nupciais
vê minhas plumas cardeais
em todo o seu esplendor
sou eu, sou eu, nem mais
a suplicar o teu amor

É a dança mais pungente
mão atrás e outra à frente
valsa de um homem carente
mão atrás e outra à frente
valsa de um homem carente

Carlos Tê – compositor e poeta português

sexta-feira, setembro 15, 2006

Terra Bensuada

Terra Bensuada

Pintura de Ivone Ralha


A manta rota dos Deuses
cobriu o sol
e a terra
mais sagrada
tombou na suprema escuridão...

Horizontes roxos pairam no ar
há mortos, perdidos, ausentes
e a terra chora baixinho.

Ao luar, caju dorido,
ressoa manso o tambor
amordaçado pelo truar dos canhões,
bazucas, murteiros, obuses.

A manta rota dos Deuses
cobriu o sol
e a terra
mais sagrada
chora só e baixinho
morte, agonia, tormento.

-Que Deus fadou o teu Destino
oh terra bensuada
exangue, exausta em sangue?

-Que Deus fadou o teu Destino
oh terra bensuada
queimada dormindo em guerra?

Namibiano Ferreira – poeta luso-angolano

quinta-feira, setembro 14, 2006

Poema do Semba

Baía de Luanda


O Semba Semba é canto de avenida
É chuva de primavera

Semba é morte Semba é vida
O Semba Semba é o meu choro dolente
Olhar nossa vida de frente
Semba é suor Semba é gente

O canto do Semba o canto do Semba ele é nobre

O canto do Semba ele é rico o canto do Semba ele é pobre
O canto do Semba ele é rico o canto do Semba ele é pobre

O Semba no morro Semba no morro é fogueira

O Semba que traz liberdade o Semba da nossa bandeira
O Semba que traz liberdade o Semba da nossa bandeira

O Semba, Semba é kanuco de rua

Na escola da vida ele cresce de tanto apanhar se habitua
Na escola da vida ele cresce de tanto apanhar se habitua

A voz do meu Semba a voz do meu Semba urbano

É a voz que me faz suportar o orgulho em ser Angolano
É a voz que me faz suportar o orgulho em ser Angolano

Paulo Flores - Cantor e poeta luso-angolano

terça-feira, setembro 12, 2006

Soneto da Intimidade

Malangatana

Quadro de Malangatana Ngwenya Valente


Nas tardes de fazenda há muito azul demais.
Eu saio as vezes, sigo pelo pasto, agora
Mastigando um capim, o peito nu de fora
No pijama irreal de há três anos atrás.


Desço o rio no vau dos pequenos canais
Para ir beber na fonte a água fria e sonora
E se encontro no mato o rubro de uma amora
Vou cuspindo-lhe o sangue em torno dos currais.


Fico ali respirando o cheiro bom do estrume
Entre as vacas e os bois que me olham sem ciúme
E quando por acaso uma mijada ferve


Seguida de um olhar não sem malícia e verve
Nós todos, animais, sem comoção nenhuma
Mijamos em comum numa festa de espuma.


Vinicius de Moraes – poeta brasileiro

segunda-feira, setembro 11, 2006

A Mãe Vazia

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Pintura de Etona


Todos os dias eu via
A mulher sentada, vazia,
Num cruzamento: agonia.
Com um filho no colo,
De quem passava pedia.
Amamentava e pedia.

Tinha dois outros,
Com quem brigava e pedia.
Os filhos inquietos corriam,
Brincavam na rua e pediam,
Mas, de perto da mãe, não saíam

Que paradoxo eu via:
Uma plenitude vazia,
Os filhos dali não saíam.

Nagibe de Melo Jorge Neto – poeta brasileiro

domingo, setembro 10, 2006

Batuque ao Longe

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Do fundo da noite
a mesma toada batendo.
(É noite de medo?)


A mesma toada por sobre os telhados,
trazendo mensagens que tombam desfeitas.


(Coladas aos vidros
há vozes de greda).

A mesma toada roçando na porta,
batendo.

Por sobre as ramadas, calcando o capim,
em volta da serra, caindo do espaço,
em ecos de outrora por todos os lados.


Gloria de Sant'anna – poetisa luso-moçambicana

quinta-feira, setembro 07, 2006

Meu Canto Europa

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Agora,
agora que todos os contactos estão feitos,
as linhas dos telefones sintonizadas,
os espaços de morses ensurdecidos,
os mares de barcos violados,
os lábios de risos esfrangalhados,
os filhos incógnitos germinados,
os frutos do solo encarcerados,
os músculos definhados
e o símbolo da escravidão determinado,

Agora,
agora que todos os contactos estão feitos,
com a coreografia do meu sangue coagulada,
o ritmo do meu tambor silencioso,
os fios do meu cabelo embranquecidos,
meu coito denunciado e o esperma esterilizado,
meus filhos de fome engravidados,
minha ânsia e meu querer amordaçados,
minhas estátuas de heróis dinamitadas,
meu grito de paz com chicotes abafado,
meus passos guiados como passos de besta,
e o raciocínio embotado e manietado,

Agora,
agora que me estampaste no
rosto
os primores da tua civilização,
eu te pergunto, Europa,
eu te pergunto:
AGORA?


Tomás Medeiros – poeta são-tomense

quarta-feira, setembro 06, 2006

Bem, Hoje Que Estou Só e Posso Ver

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Bem, hoje que estou só e posso ver
Com o poder de ver do coração
Quanto não sou, quanto não posso ser,
Quanto se o for, serei em vão,
Hoje, vou confessar, quero sentir-me
Definitivamente ser ninguém,
E de mim mesmo, altivo, demitir-me
Por não ter procedido bem.
Falhei a tudo, mas sem galhardias,
Nada fui, nada ousei e nada fiz,
Nem colhi nas urtigas dos meus dias
A flor de parecer feliz.
Mas fica sempre, porque o pobre é rico
Em qualquer cousa, se procurar bem,
A grande indiferença com que fico.
Escrevo-o para o lembrar bem.

Fernando Pessoa – poeta português

segunda-feira, setembro 04, 2006

Evocação ao Cacimbo

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Tela de Paiva Carvalho


Vem, Cacimbo
Estende teus dedos anelados sobre a minha carapinha
derrama a tua inconsciente tranquilidade
sobre a minha angústia submergida.

Vem, cacimbo
eu quero ver os cafeeiros ao peso dos bagos vermelhos
endireita os troncos vencidos dos bambus
coroa os cumes altos das serras do Bailundo
limpa a visão empoeirada dos comboios que descem para Benguela
nimba poeticamente os horizontes dos camionistas de Angola.

Vem, cacimbo
debruça-te cuidadosamente sobre as plantas da madrugada,
destrói a angústia resignada das gentes da minha terra
abre-lhes os horizontes dos cantos de esperança.

Vem, cacimbo
Derrama a tua inquieta saciedade sobre a minha natureza
a esta hora empoeirada com o barulho das esquinas
com o cheiro a óleo sujo dos automóveis
e com a visão daquele nosso amigo
cujo ordenado são quinze escudos diários
irremediavelmente caído sobre a grama do jardim.

Ò cacimbo
eu quero percorrer teus campos sossegados
orquestrados pela alegria do beija-flor.

Henrique Guerra – poeta angolano

sábado, setembro 02, 2006

A Bomba Atômica

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I



Dos céus descendo
Meu Deus eu vejo
De pára-quedas?
Uma coisa branca
Como uma forma
De estatuária
Talvez a forma
Do homem primitivo
A costela branca!
Talvez um seio
Despregado à lua
Talvez o anjo
Tutelar cadente
Talvez a Vênus
Nua, de clâmide
Talvez a inversa
Branca pirâmide
Do pensamento
Talvez o troço
De uma coluna
Da eternidade
Apaixonado
Não sei indago
Dizem-me todos
É A BOMBA ATÔMICA



Vem-me uma angústia


Quisera tanto
Por um momento
Tê-la em meus braços
E coma ao vento
Descendo nua
Pelos espaços
Descendo branca
Branca e serena
Como um espasmo
Fria e corrupta
De longo sêmen
Da Via-Láctea
Deusa impoluta
O sexo abrupto
Cubo de prata
Mulher ao cubo
Caindo aos súcubos
Intemerata
Carne tão rija
De hormônios vivos
Exacerbada
Que o simples toque
Pode rompê-la
Em cada átomo
Numa explosão
Milhões de vezes
Maior que a força
Contida no ato
Ou que a energia
Que expulsa o feto
Na hora do parto.





II



A bomba atômica é triste
Coisa mais triste não há
Quando cai, cai sem vontade
Vem caindo devagar
Tão devagar vem caindo
Que dá tempo a um passarinho
De pousar nela e voar . . .



Coitada da bomba atômica
Que não gosta de matar!
Coitada da bomba atômica
Que não gosta de matar
Mas que ao matar mata tudo
Animal e vegetal
Que mata a vida da terra
E mata a vida do ar
Mas que também mata a guerra . . .
Bomba atômica que aterra!
Bomba atônita da paz!



Pomba tonta, bomba atômica
Tristeza, consolação
Flor puríssima do urânio
Desabrochada no chão
Da cor pálida do hélium
E odor de rádium fatal
Lœlia mineral carnívora
Radiosa rosa radical.



Nunca mais oh bomba atômica
Nunca em tempo algum, jamais
Seja preciso que mates
Onde houve morte demais:
Fique apenas tua imagem
Aterradora miragem
Sobre as grandes catedrais:
Guarda de uma nova era
Arcanjo insigne da paz!





III



Bomba atômica, eu te amo! És pequenina
E branca como a estrela vespertina
E por branca eu te amo, e por donzela
De dois milhões mais bélica e mais bela
Que a donzela de Orleães; eu te amo, deusa
Atroz, visão dos céus que me domina
Da cabeleira loura de platina
E das formas aerodivinais
— Que és mulher, que és mulher e nada mais!
Eu te amo, bomba atômica, que trazes
Numa dança de fogo, envolta em gazes
A desagregação tremenda que espedaça
A matéria em energias materiais!
Oh energia, eu te amo, igual à massa
Pelo quadrado da velocidade
Da luz! Alta e violenta potestade
Serena! Meu amor . . . desce do espaço
Vem dormir, vem dormir, no meu regaço
Para te proteger eu me encouraço
De canções e de estrofes magistrais!
Para te defender, levanto o braço
Paro as radiações espaciais
Uno-me aos líderes e aos bardos, uno-me
Ao povo ao mar e ao céu brado o teu nome
Para te defender, matéria dura
Que és mais linda, mais límpida e mais pura
Que a estrela matutina! Oh bomba atômica
Que emoção não me dá ver-te suspensa
Sobre a massa que vive e se condensa
Sob a luz! Anjo meu, fora preciso
Matar, com tua graça e teu sorriso
Para vencer? Tua enégica poesia
Fora preciso, oh deslembrada e fria
Para a paz? Tua fragílima epiderme
Em cromáticas brancas de cristais
Rompendo? Oh átomo, oh neurônio, oh germe
Da união que liberta da miséria!
Oh vida palpitando na matéria
Oh energia que és o que não eras
Quando o primeiro átomo incriado
Fecundou o silêncio das Esferas:
Um olhar de perdão para o passado
Uma anunciação de primaveras!


Vinícius de Morais – poeta brasileiro